"Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma bênção estranha, com ter loucura sem ser doido. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo."
Clarice Lispector
Você sabe, mestre é aquele que, de repente, aprende.
Então, é essa a única paz disponível neste momento... Uma luz nova; outra forma de clareza sobre nossas próprias limitações; um chamado à humildação; um dobrar de joelhos, que na falta de gentileza fere, mas ainda assim revela: estamos aqui para aprender.
Aprender para além do intelecto que discrimina, aprender com o melhor uso da nossa tecnologia curativa, energética, intuitiva: transformação.
Vou pegar uma direita aqui pro mundo prático –– mas logo volto ao existencial. É rápido.
Sabe que enquanto morei na Austrália precisei me adaptar a inúmeras mudanças, a começar pela direção ao contrário, é que lá funciona à mão inglesa, e eu perdi as contas das vezes que entrei na contra mão. Mas aprendi.
Por outro lado, a adaptação com a diferença no tempo-lógico-social praticado por lá foi fácil.
Na Austrália eles praticam horários de funcionamento saudável. O shopping, por exemplo, abre às dez e fecha às cinco da tarde todos os dias, com exceção das quinta-feiras, quando funciona até às nove da noite. Então, diariamente, com o encerramento das atividades produtivas no cair da tarde, as famílias se encontram nas praias, nos parques e gramados pra praticar esporte, ficar junto, brincar, caminhar, surfar, e depois ir pra casa, cozinhar, conversar... O estilo de vida fica mais natural, mais feliz, mais sadio mesmo.
Também no Japão o comércio tem horários mais gentis. O comércio, por exemplo, abre a partir das onze, dando tempo para todos se organizarem em suas casas pela manhã. Enquanto não entendi isso, fiquei esperando no meio fio as portas das lojas abrirem. Mas, veja, faz todo sentido. Com mais tempo disponível, as mães arrumam as lancheiras e penteiam os cabelos de seus filhos com mais carinho. (Quem precisa desesperadamente comprar um batom vinho de manhã cedo?)
Essa volta toda era pra dizer que esse período vivendo em quarentena, obrigados a mudar nossa relação com o tempo, com nossa casa, e com o modo como vivemos, pode –– deve –– ter suscitado desentendimentos, novas questões, outras soluções e, portanto, novos saberes.
Sem entender a princípio como lidar com tudo isso, olhamos para o essencial.
E é esse o ponto: foi preciso se perder pra se achar. Deixar de saber para reaprender. Abrindo mão das certezas, ainda que de modo forçado, expandimos aquilo que nos limitava.
É como disse Clarice, bom é ser inteligente e não entender!
Porque aí sim podemos absorver, dar bom uso a essa bênção estranha que chegou para nos fazer desaprender –– para começar a construir quem sabe um novo jeito de ser.
Daqui pra frente a nova lucidez talvez seja a consciência de se deixar tocar pela vida como nos deixamos tocar pela arte. Ela, que é literalmente desinteressada. Não faz a menor questão de se fazer entender. E sequer faz sentido. Mas quando chega, bate, decide, faz dobrar os joelhos.
Ela não serve pra mais nada... A não ser tudo isso.
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