Lembra do dia que você me levou para fazer aquela cirurgia, e no caminho você me apresentou a música "Isn't she lovely", de Stevie Wonder? Obrigada, mãe.
Eu entendi tudo. De manhã cedinho, ansiosa, em jejum, a caminho da clínica – para reparar minha natureza (porque eu queria) – você, com seu jeito poderoso e mítico, me disse tudo sobre o amor de mãe, na voz de um cego que enxergava a própria filha.
E sabe aquele verão, quando você me explicou que beijar dois meninos não podia? E me colocou de castigo porque eu caí de mobilete? E não me deixou ir naquela festa de gente mais velha? E criticou o lápis preto no contorno do meu batom? E me deu uma bronca épica porque eu contei baita mentira? Obrigada, mãe.
Entendi tudinho.
E nos anos oitenta, quando a tarde caía aos domingos, e você me colocava de frente para o espelho com as perninhas na pia e, enquanto eu brincava com a água, cortava as pontinhas do meu cabelo? Obrigada, mãe.
(Hoje eu faço igualzinho com meus filhos).
Sabe quando você me levava no Parque Moscoso e sacava sua Canon pra me fotografar em várias poses (no escorrega, comendo pipoca, no trenzinho)? E todos os vestidos de festa, de pregas e golas e arcos de laços feitos com amor pela sua tia, com tecidos importados? E todas aquelas exposições de arte que você organizava? E sua faculdade, sua galeria, seu gosto arrojado? Obrigada, mãe, obrigada.
Não só entendi, como quis tudo para mim.
E nas noites (todas) quando eu tive medo e você me dizia que pensar em coisas boas era o segredo? E quando a gente ia na "Mesbla" e eu (sempre) me perdia, te anunciava no microfone e a gente (alegria máxima) se reencontrava? E a ansiedade do barulho da chave na porta, de noite, depois do trabalho, quando você chegava? E a moral quando precisei tomar a decisão mais difícil da vida? Obrigada, mãe. Obrigada.
Você me ensinou cedo que para tudo tem jeito.
E pelas festas que você dava em casa, e pelo perfume que você usava, pela cor do seu batom, do seu cabelo. Pelo universo do seu closet, pelos seus discos, suas música, suas letras, nossa sala, todos os quadros, nossos filmes, sua cama, seus carros, seus tapetes raros. Seu humor ácido, seu coração gigante, abissal, criativo e provocante. Obrigada, mãe, obrigada.
Sabe, desde que me tornei mãe, compreendi que a maternidade é mesmo um voo cego, um instinto ao volante, uma montanha-russa emocional, um jogo cheio de erros, acertos e consequências. Mas apesar de toda nebulosidade, ser mãe é ter uma certeza tão pura quanto a cantada por Stevie Wonder, em 1975, sobre sua filha recém-nascida, Aisha: são a mesma coisa, o amor e a vida.
De modo que, mãe, eu não tenho dúvida, fui feita do amor, pelo amor, para o amor. Fomos abençoadas uma com a outra e nada no mundo pode mudar isso.
Fica assim então, hoje e para além da vida, eu sou seu bem. E você, meu amor do coração.
Este vídeo pode te interessar
Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.