1988, são três da madrugada e eu estou deitada num colchão no chão do meu quarto, que passava por uma reforma. Meu pai está deitado ao meu lado, claro –– aos oito anos eu raramente dormia sozinha porque era muito, mas muito medrosa. De repente acordo assustada e vejo no escuro um vulto parado. Acordo meu pai em estado de choque: "juro pai, tava bem ali na porta!".
Mesmo morrendo de sono, e conhecendo perfeitamente meu potencial fantasioso, ele, por solidariedade, segurança, ou porque fazia parte da cena psicológica, se levanta e vai fazer uma ronda pela casa. Depois volta: "tá vendo, meu amor, não tem ninguém, não tem nada. Dorme, tá tudo bem agora".
2001, ante-véspera de Reveillon, inverno-gelado em Barcelona, na Espanha. Quicando de frio na fila da única cabina telefônica da rua onde eu morava, revia mentalmente o discurso que faria para explicar que a experiência de morar fora já tinha valido e que eu queria mesmo voltar para casa –– mesmo sendo antes da hora e com um curso de espanhol inacabado. Minha mãe já tinha deixado claro que se eu tivesse a adolescente audácia de abandonar o curso (pago) pela metade o castigo seria dobrado. Quando chega minha vez, coloco as fichas e telefono direto para o meu pai, no trabalho. Pai, tá um frio danado. Eu queria voltar para casa`.
Mesmo conhecendo perfeitamente meu potencial para malandragem, ele, por saudade, pena, ou porque fazia parte do seu charme, diz sem titubear: `vem, minha flor, eu seguro as pontas com a sua mãe, volta pra casa`.
Noite de sábado, verão de 1993, Guarapari. Estou chorando inconformada porque do alto dos meus treze anos de idade, eu quero desesperadamente ir à boate, mas minha mãe não deixa, claro. E como em todos os outros finais de semana, a cena está armada: ela calmamente diz que `não` e eu choro até ficar descabelada. Só que dessa vez, ou para ser engraçada ou para dividir com ele o papel de malvada, minha mãe sugere que eu peça ao meu pai para me levar (e ficar comigo) na boate, que seria a "Lua Azul", no caso. Pronto, ele não teve mais sossego. Eu implorava a ele o sacrifício de me levar para conhecer uma boate. "Não custa nada, me leva pai, só um pouquinho, por favor, por favor."
Mesmo conhecendo perfeitamente meu potencial para a precocidade, ele, por caridade, companheirismo, ou porque fazia parte do roteiro de pai de menina naquela idade, me leva no raio da boate e fica de longe me olhando dançar na pista bem empolgada, piscando eventualmente para mim, quando nossos olhos de cruzavam.
Manhã de um domingo, dez anos atrás. Estou sentada no chão da sala de casa com a cara inchada. Faz hora e meia que eu estou chorando, metade de susto, a outra um
misto de medo e felicidade. Telefono para o meu pai, que acabou de acordar e ainda nem tomou o primeiro gole de café, e digo num tom ligeiramente grave: "Pai, eu tenho uma coisa para te falar".
Mesmo conhecendo perfeitamente meu potencial para ser dramática, ele, por alegria, emoção, ou porque a positividade é um dos traços mais fortes da sua personalidade, diz muito calmo: "Minha filha, tá tudo bem. Agora, confirma e me liga, porque se for para comemorar, eu quero comemorar de verdade!".
Ele sempre foi e sempre vai ser meu herói. Um personagem mágico que me apazigua, me fortalece, me encoraja e me salva! (Sempre) –– desde criança, passando pela adolescência, e até agora, quando, teoricamente, já passou da hora.
Acho que amor de pai é amor de sobra.
Compreensão além da medida e disposição a toda prova. Porque pai não carrega filho na barriga, não enjoa, não vomita, não amamenta, nem faz cesariana. Mas, em compensação, passa o resto da vida nutrindo a cria num imaginário espaço aminiótico onde tudo é possível –– inclusive jamais deixar de enxergar uma filha –– mesmo quando ela é crescida e passou para o time dos que não são mais criadas, mas criam. Assim, ainda, Pai é conjugação do verbo ser-gigante.
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