É artista e escritora, e como observadora do cotidiano, usa toda sua essência criativa na busca de entender a si mesma e o outro. É usuária das medicinas da palavra, da música, das cores e da dança

Tio Toninho

"Depois de uma de aventura em busca de distrações e prazeres mais imaginários de que reais, foi um fiasco. Tio Toninho perdeu tudo que tinha"

Publicado em 18/07/2020 às 08h00
Atualizado em 19/07/2020 às 17h56
Homem chorando
'Ele confessa com olhos melancólicos, que se arrepende de não ter amado de verdade. Que se arrepende de não ter sabido amar a si". Crédito: Pixabay/ HolgersFotografie

"Amar é dar aquilo que não se tem"

Lacan

Toninho é um homem antigo.

Foi um menino assombrado pela própria feiura. Diz que quando pequeno, Toninho era feio de dar dó, mesmo. Seus dentes de Mentex, seu óculos espessos como fundos de garrafa, seu andar cambota, seu cabelo arisco, partido ao meio à força de Gumex, a língua presa, o calçado antigo, tudo contribuía na justificativa do apelido que deram ao menino: esquisito.

Toninho-esquisito tinha, porém, muitos amigos. Era bom contador de histórias, era engraçado e excelente em matemática. Seu pai, dono de um pequeno armazém, colocou o garoto pra trabalhar logo cedo. E no caixa, atrás do balcão, ele aprendeu o poder das palavras e da negociação. E assim, de bom vendedor, passou a gerência da venda que crescia vertiginosamente e com o tempo, virou um grande negócio. A essa altura, Toninho já tinha seus 17 anos e com seu próprio dinheiro comprou uma Honda prateada.

Logo na primeira volta na praça, ele que nunca tinha sido considerados pelas garotas da cidade, recebeu novos olhares, um aceno e até uma piscadela. Entendeu nada, mas gostou e muito da novidade que a vida agora apresentava.

Dias depois, conheceu uma garota distraída, e muito atenta, que lhe deu conversa na entrada de uma festa. Nessa noite Toninho subiu aos céus. Muito sabida a moça mostrou a ele, e com requintes de boa crueldade, o que era uma distração de verdade. Ele enlouqueceu de paixão e no dia seguinte comprou pra moça um anel.

Não tinha dúvida, era aquilo mesmo que ele queria pra toda vida. Aconteceu que na noite em que voltou à praça na tentativa de entregar à moça a circunferência prateada, encontrou ela sentada no colo de Calabouço, um rapaz danado de forte e conhecido pelas especialidades violentas. Mas a paixão de Toninho era verdadeira e ele não deu meia volta, chegou perto do casal e insinuou que queria falar com ela. Recebeu uma sonora gargalhada seguida de uma rosnada e um passa-fora.

Voltou pra casa arrasado e jurou para si que nunca mais seria feito de trouxa. Nunca mais! Pronto.

Daí em diante, você pode imaginar. Toninho se cobriu de acessórios, comprou automóveis, puxou ferro, investiu em ternos de linho, e caiu na vida. Tornou-se um sedutor, um garanhão, não perdoava um rabo de saia, e pulava de galho em galho sem nunca dar satisfação. Achou por bem punir o mundo feminino com seu mais genuíno descaso. Seria mais ele e ponto final.

Daria aquilo que tinha, seu dinheiro e seu falo, em troca daquilo que lhe era caro: sentir-se poderoso, sentir-se desejado. Toninho se apaixonou pela potência de possuir as mulheres. Aprendeu a arte da sedução, afiou as linguagens do apaixonamento, e aprendeu a encenar, sem se envolver. E lacrou o coração para se prevenir de sofrer.

O resultado dessa vida de aventura em busca de distrações e prazeres mais imaginários de que reais, foi um fiasco. Tio Toninho perdeu tudo que tinha. Depois de seis divórcios e oito filhos, que ainda brigam na justiça por uma suposta herança em vida, este homem desistiu. Entregou as armas e todo patrimônio que tinha. Foi morar sozinho numa casa de montanha e cuidar das galinhas.

Dia desses, quando batíamos um papo por acaso, sentados na varanda da casa da filha dele, ele confessa com olhos melancólicos, que se arrepende de não ter amado de verdade. Que se arrepende de não ter sabido amar a si.

Na verdade, de não ter sido ensinado... Ou de não ter aprendido... De não ter podido dar aquilo que não tinha pra dar.

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