Você que me diz não você que não pode comigo você que não vem você que não fica você que não sustenta que não aguenta você que não topa você que me ignora você que não me olha que não me roça que não me cheira que não me adoça você que nem me sabe que não me amassa que não me ouve que não me lê você que não me dança você que não diz sim você que eu não vi você que eu não quis que eu não olhei que eu não toquei que não cheirei que não sorri, você que eu não ainda sei. Você que eu não sinto muito em dizer, talvez.
Enquanto esperava o único elevador que estava funcionando, para chegar ao terceiro céu, que naquele prédio ficava justo no décimo primeiro andar, ela olhou as pessoas à sua volta. Cada vez que voltava àquele edifício monumental experimentava uma curiosidade de circo, um alvoroço de menina, rebuliço. Todos que aguardavam a chegada da caixa metálica pareciam à vontade, sem maiores expectativas sobre o dia, como ela. Eram homens distraídos, alguns de terno e gravata, mexendo no telefone, outros conversando discretamente entre si, outros resmungando da demora. Ela secretamente selecionava o que gostava em cada um deles, assim, vagamente... Dando uso à própria poesia.
Não esperava nada em específico da consulta daquele dia, era mais uma, de rotina. Ainda assim, sentia uma espécie de fome, um apetite pelo que a vida traria. Desprovida de objetivos específicos, esperava com alegria pelo que vinha –– como quem espera um filme no meio do dia, uma festa de repente, um encontro por acidente.
Quando enfim o elevador chegou, embarcaram todos, mesmo cientes do limite de pessoas expresso no aviso. E assim, munidos de uma justificativa íntima, se espremeram com gentileza cúmplice e passaram a apertar no painel seus destinos. Ela, que ficou mais próxima dos botões, imprimia cordialmente os números solicitados. Quando um homem de terno azul-não-muito-escuro falou com sotaque vivaz, num tom semi-autoritário e basco, “once, por favor”, ela sentiu um chicote manso golpear sua espinha.
Virou o pescoço lentamente, para aplicar alguma discrição à curiosidade, e viu de relance que era um homem de cabelos castanhos com alguns fios acinzentados e bigode. Pareceu-lhe aristocrático e inocente ao mesmo tempo.
A caixa parou. Sexto andar. A cada parada o elevador esvaziava um pouco, e ela secretamente satisfeita, inquieta, arrumava o cabelo e sorria tímida da audácia de sua precoce fantasia. Gostava de brincar com a natureza de si mesma.
Quando alcançou o décimo andar, saíram as demais pessoas, ficando somente ela e o homem de terno azul. Subitamente, sentiu verter da garganta a força natural dos que jamais atentam contra a vida e disse: “nunca te vi por aqui”.
“Sou passageiro”, disse ele com alguma timidez.
Nesse exato instante ela foi vertiginosamente tocada por uma espécie de ternura, e experimentou uma força que se curvava diante dela, deixou-se emocionar. As portas se abriram para o corredor do décimo primeiro andar. O homem fez um aceno com a cabeça, como quem pratica uma reverência sutil, e partiu. Sumiu para dentro de alguma porta daquele passeio comprido.
E assim inaugurou-se a sessão tortura daquele dia. A invenção de um ser masculino, sem nome, que não pôde fazer outra coisa senão ser franco em sua partida. Potente e dominador, vulnerável e submisso de alguma maneira.
Um novo talvez como companhia.
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