A certeza de que nos próximos segundos você estará com o corpo paralelo ao chão é a constatação da qual não se pode fugir, por não haver tempo de mudar o rumo, a direção. Alguns chamam de destino ou azar. Não importa. O tombo vem e vem com tudo. Depois da certeza, a aceitação: irei cair. E caio. Caio muitas vezes. No sentido metafórico e no literal. Que diferença faz? Porque no instante enquanto despencamos nossa mente processa as informações na velocidade da luz. Medo. Dor. Vergonha. Embaraço. E ainda por cima, as explicações: está tudo bem, obrigada. Machuquei não, foi só um arranhão. Agora, me recompor. Medo de perder alguma coisa que rolou da bolsa sem que eu percebesse. Chaves de casa, documentos que comprovam que eu existo, me livrar de todos que tentam ajudar ou que atrapalham com olhares de desnecessária piedade.
Uma rampa desnivelada e esburacada me jogou no chão dia desses. Antes da pandemia, antes de haver medo do contato físico entre as pessoas. Caso contrário, acredito que não veria tantas mãos tentando me levantar, sem saber o que fazer com a minha cadeira, com meu corpo, com minhas coisas, com a minha calma, que era bombardeada por inúmeras perguntas. A mesma resposta: estou bem.
Tá rindo de quê?
Para muitas pessoas, é normal rir quando alguém leva um tombo no meio da rua. Programas de TV colecionam situações de constrangimento, com gente tropeçando e se estabacando em rede nacional. Na sala, as famílias soltam gargalhadas sem pena. Mas, no meu caso, apesar de ser gente e cair como todo mundo, exceto pela minha cadeira, vejo que ninguém ri. Pelo contrário, pareço algo frágil e raro que jamais poderia passar por aquela situação. Ser uma pessoa com deficiência me tira a oportunidade de ter uma queda que provoque a risada das pessoas?
Sem querer, essa superproteção acaba por ser uma forma de discriminação, de nos tratar como especiais, quando o que a gente quer mesmo é ser tratada como iguais ainda que com as nossas diferenças e especificidades.
Isso vale para idosos, pessoas com deficiência, criancinha, grávidas, obesos, para qualquer um. Todos nós, seres humanos, precisamos e gostamos de proteção, mas não precisamos nem queremos que nos sufoquem. Não é mesmo?
Ainda sentada no chão, antes que se consumasse o resgate desvairado, eu disse firme: peraí! Deixa que eu me levante. E fiz isso cantando o inesquecível Vanzolini: "levanta, sacode a poeira e dá volta por cima”. E aí aconteceu a gargalhada de que eu precisava. A gargalhada que me incluiu. Que me fez sentir igual, afinal quem nunca tropeçou? Ah, sempre que tropeço em público (ou melhor, quando minha rodinha encalha) digo bem alto: “essa é apenas uma das minhas técnicas de sedução.” Pronto. Daí fica mais leve e sigo.
Já de volta para cadeira e refeita, era a hora de ouvir detalhes da minha queda hilária, da minha patetice (adoro), e de aguentar gozação. Não sabem como super curto isso. Como faz bem ser tratado como igual. E ali, cercada de pessoas que eu nunca tinha visto, passamos a conversar sobre os problemas de mobilidade urbana, sobre calçadas esburacadas, rampas e corrimões que inexistem, carros sobre as calçadas, entulho, lixo e tudo mais que nos derruba.
E, de repente, num passe de mágica, viramos todos cidadãos a falar sobre problemas comuns, mesmo que em escalas diferentes. Afinal existem entre todos nós especificidades que nos distinguem, a espera do respeito que nos une. Isso é igualdade nas diferenças. Isso é inclusão. Problemas de mobilidade e acessibilidade são de todos, mesmo que atinjam de forma distinta cada grupo de interesse. Existem entre especificidades que nos distinguem a espera do respeito que nos une. Isso é igualdade. Isso é inclusão.
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