Não é novidade que nesta pandemia, que não acaba ou que está longe de acabar, desenvolvi algumas listas e dicas sobre alguns assuntos. Aliás, escrevi aqui algumas delas. Mas o que eu não imaginava era que depois de um ano em isolamento, fosse necessário reaprender a sair de casa.
Desde que tudo isso começou, a rotina se transformou em como cuidar do essencial e manter a ordem da casa e da mente. Treinos, estudos, escritas, trabalho, finanças e serviços domésticos dão conta de deixar a vida aparentemente nos eixos. E confesso que quando falho ou me escapam as forças, a experiência dessa pandemia se torna lancinante e exaustiva.
Quem me leva para a rua
Assuntos bancários são um dos principais responsáveis pela minha aventura extra casa; ainda hoje preciso assinar papéis que comprovem que eu sou eu de fato. Outra ousadia a que me dispus foi a visita a um clínico geral, com direito a inúmeros exames. Voltei para a toca aliviada por saber que tudo estava em ordem – sorte ainda não terem inventado raio-x para pensamentos. Para esses pseudo passeios, conto com uma carruagem chamada táxi acessível onde vamos eu e minha cadeira, sem que haja necessidade de desmontá-la. Menos mãos, menos toques, mais segurança. Dá para dizer que é quase divertido.
Quase porque a ideia de sair precisa vir acompanhada de um amplo planejamento – algo tão banal quanto ir ao mercado hoje se tornou um risco à vida. Não só porque existe um vírus mortal à solta, onde máscara ultra filtrante ou duas máscaras, álcool, proteção ocular, não colocar a mão no rosto ou cabelo, manter distância, são itens essenciais para manter a vida e que jamais podem ser esquecidos; mas também porque o Brasil inteiro parece desabar em nossas cabeças, com ataques aos direitos, negacionismo da crise humanista e falta de afetos. Reaprender a ir para rua virou um exercício para mim.
Com mais de 353 mil brasileiros mortos pela covid-19, é sensato que fiquemos em casa, que aceitemos essa rotina das paredes dos (in)cômodos, que muitas vezes nos sufocam, mas não nos mata. Pensar assim descomprime um pouco a angústia e me encoraja a encarar a saída de vez em quando para aliviar (mesmo para resolver problemas).
Já ouviu falar em Síndrome da Cabana?
A minha falta de coragem para sair de casa não passa pela Síndrome da Cabana, que está diretamente ligada a um grande período de isolamento social. Essa síndrome, que tem características específicas e precisa ser acompanhada por profissionais, foi descrita nos anos de 1900, e diz respeito às pessoas que saiam para caçar e ficavam por longos períodos em cabanas, quando voltavam para o convívio social, muitas vezes, não conseguiam sair ou ter contatos com outros indivíduos.
Lá fora, pelas ruas e lugares, a pandemia dilacera e ganha todos os espaços. O vento que entra dos vidros abertos do táxi, o céu azul, o trajeto que sempre fiz, os barulhos dos carros e o mar, não amenizam a falta de pertencimento que o vírus me privou. O cinza que vejo pelos cantos em que circulo e respiro são parte dessa clausura. E as muitas saudades que sinto dos amigos, do movimento, do antes da pandemia, e família, não dão conta de suportar o presente. A pandemia revelou muito o que penso: é como se um mundo novo existisse fora do meu. Experimentar esse mundo faz parte do reaprender a sair. Tarefa que não tenho pressa em fazer.
Ainda que ela persista, um dia vai passar, mas vai passar por conta própria. Somos frágeis e precisamos cuidar da nossa solidão, esvaziar as gavetas e fortalecer nossos vínculos, nos humanizar. Por isso, para me recolocar nos trilhos e me manter imune, ainda prefiro o silêncio do isolamento, o sol na varanda, o barulho distante dos carros, as subidas e descidas até a portaria, a proteção. Não há atalhos no percurso da vida. Reaprender a sair é liberdade em ebulição. Não me apresso.
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