Mariana Reis é administradora de empresas e educadora física. É pós-graduada em Gestão Estratégica com Pessoas e em Prescrição do Exercício Físico para Saúde. Atua como consultora em acessibilidade e gestora na construção e efetivação das políticas públicas para a pessoa com deficiência em Vitória

Do direito de ser feliz

Tantas coisas me vieram à cabeça ali, naquela sala, sobre o esforço que ela faz para esconder a deficiência, e se realmente ela é feliz, no quanto teve que renunciar a seus desejos por viver presa e com medo de não ser aceita

Publicado em 25/05/2021 às 02h00
consulta médica
O difícil foi aceitar que muitos pacientes não gostam de ser atendidos quando ela fala que é surda. Crédito: consulta médica

Se houvesse um concurso para saber quem mais cumpriu o distanciamento social, poderia me inscrever e concorrer aos primeiros lugares – ainda mantenho meu espírito competitivo e quem compete com rigor não abre mão da ética. Bem longe de ser idiota, eu me sinto uma vitoriosa em garantir a minha vida e a de muitos outros brasileiros que de alguma forma não podem ficar em casa. Mas as consultas com alguns médicos nem sempre são possíveis apenas on-line. Planejada e munida de toda segurança, lá vou eu consultar.

É sempre surpreendente quando os olhos dos médicos cruzam com os meus e percorrem todo meu corpo. Como cadeirante, percebo de imediato muitas dúvidas e uma certa tensão, às vezes. Geralmente, ficam sem jeito ou preocupados em me ajudar, ou não, caso precise. É uma mistura de "será que eu vou dar conta em atender?" com "será que essa médica entende mesmo sobre deficiência?"

Da preocupação à compaixão

Vencidas as estremecidas da primeira intenção, partimos para a conversa. Estranhei, pois, a médica pediu que eu tirasse a máscara. Apesar de ter ficado desconfortável com o pedido, tirei. Ela me fez várias perguntas, e eu respondi. Ora olhando para o lado ou cobrindo a boca, ora falando enquanto digitava no computador. Tudo parecia normal, não fosse fazer a conversa toda sem máscara. Aquilo me deixou bem preocupada e não consegui relaxar durante a consulta.

Ao finalizar este nosso primeiro contato, fui direcionada para uma enfermeira, era como uma entrevista para concretizar o plano novo de saúde. Não aguentei e disse para enfermeira que estava preocupada em me contaminar, pois, na consulta com a médica, ela me pediu para falar sem a máscara. Foi quando de imediato a enfermeira me disse: a doutora é surda. E quando está sem o aparelho não consegue ler os lábios do paciente com a máscara.

Diagnóstico: capacitismo

Desta vez a surpresa foi minha, a preocupação em ser contaminada pelo vírus era grande, mas não maior que a minha constatação do quanto de atitudes capacitistas aquela médica viveu e vive na vida.

Agarrei o braço da tal enfermeira e disse, vamos lá comigo, preciso falar com ela novamente. Ela foi caminhando na frente, deu umas batidas na porta já abrindo.

A doutora me olhou, de novo, de forma confusa e tratei de esclarecer o porquê estava voltando ali. Pedi desculpas pois ela não me disse que era surda e, caso soubesse, teria feito a consulta de forma bem diferente. Logo eu, que tenho tantos amigos surdos e até arrisco um pouco de libras. 

Ela abriu a mão bem em minha direção mostrando as pequenas peças, estava sem eles no ouvido quando me consultou. Com certeza eu faria a conversa sem desviar o olhar como fiz, e falando mais pausadamente para que me entendesse. Quanto da nossa consulta se perdeu por eu não saber da sua surdez? O difícil foi aceitar que muitos pacientes não gostam de ser atendidos quando ela fala que é surda. Eles não são dignos de serem seus pacientes, respondi. Eu faço questão que você seja minha médica.

Felicidade é um direito

Tantas coisas me vieram à cabeça ali, naquela sala, sobre o esforço que ela faz para esconder a deficiência, e se realmente ela é feliz, no quanto teve que renunciar a seus desejos por viver presa e com medo de não ser aceita. Mas principalmente, voltei para casa com o meu pensamento num vídeo de um bebê surdo que viralizou na internet.

Esse vídeo mudou para sempre o meu modo de entender o verdadeiro sentido do “transpor barreiras” e me fez entender que a felicidade está muito além das conquistas. O vídeo circulou na internet – acho que ainda circula – e encantou o mundo inteiro (eu mesma o revi uma dezena de vezes). Nele, um bebezinho de menos de dois meses de idade (sete semanas para ser exata), surdo de nascença, recebe um aparelho auditivo. Em um primeiro momento ele chora quando o aparelho está sendo introduzido em seu ouvido para, em seguida, ouvindo as vozes dos parentes ansiosos a seu lado, demonstrar uma emoção imensa, um brilho forte no olhar, e um sorriso manso e intenso, desses que vem de dentro, da alma.

Foi apresentado aos sons da vida e os primeiros que ouviu foram os sons do amor – ah, o amor! – da querença, do pertencimento. Até então os sons não faziam parte de seu mundo e nem tinha ideia que existissem, já que nessa idade a socialização é mínima, não dá para intuir pelo comportamento dos outros. E é exatamente por isso que a sua reação é emblemática, mostra que a superação de uma barreira independe até que a gente tenha consciência dela, e o resultado disso cala fundo nos que a superam, pois faz descobrir possibilidades infinitas de se ser feliz. Imagine então para os que têm consciência de suas limitações.

Acessibilidade começa com a gente

Há toda uma tendência em vincular a questão da superação de barreiras para as pessoas com deficiência a aspectos instrumentais, arquitetônicos, cidadania e coisas assim. Não deixa de ser verdade. Mas o que esse vídeo me mostrou é que existe um direito maior, que é o direito de ser feliz, o que só pode ocorrer se vivermos na plenitude dos nossos potenciais. Aquele aparelhinho, desagradável de se usar, no ouvido da médica que me atendeu, e no ouvido do bebê, era a diferença entre ser e quase ser feliz.

Mas é só um instrumento, não podemos perder isso de vista. O que se quer em verdade é que as pessoas sejam felizes, e para isso deve-se disponibilizar os meios para superar eventuais deficiências, e isso, como no caso do lindo bebê e da médica, só é possível com respeito ao ser humano e amor, muito amor entre nós.

Senão, é como na música do genial Luiz Gonzaga,"Assum Preto". Mesmo cego, e na gaiola, ele canta, mas canta de dor.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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