Muitos de nós sempre ouvimos falar em qualidade de vida, não é? Pois este conceito é tão complexo quanto abrangente. Por isso escolhi a definição estabelecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para tentar amenizar o estrondo causado pelo médico que atendeu Michael Hickson, vítima da Covid-19, no Texas, Estados Unidos. Michael era um homem negro, tetraplégico e pai de 5 filhos. Vivia numa clínica onde recebia todos os cuidados para manter suas necessidades diárias.
A saúde de Michael se agravou em decorrência dos sintomas do coronavírus, e foi necessário um respirador para mantê-lo vivo. Para a surpresa da família e do mundo, o médico que tratava Michael resolveu interromper seu tratamento alegando que não haveria melhora em sua qualidade de vida devido a suas deficiências. A partir daqui, fica difícil continuar esse texto porque, assim como Michael, também tenho uma deficiência. Portanto, pela minha perspectiva, torna-se impossível compreender que um médico, formado para salvar vidas, opte por descartá-la ao julgar pela sua régua o que é e o que não é qualidade na forma do viver.
Escrever é resistir
Encontro forças porque é urgente rever conceitos e excluir os julgamentos somente pelo nosso ponto de vista. Enfrento a dor que essa notícia me causou para tentar conscientizar você que me lê por aqui. Acredito que não nos tornamos impotentes diante da morte, mas quando temos uma arma apontada para nossa cabeça e quando estamos numa cama de hospital. A impotência e a falta de dignidade, nas duas situações, têm a mesma proporção.
A OMS diz que qualidade de vida é a “a percepção que um indivíduo tem sobre a sua posição na vida, dentro do contexto dos sistemas de cultura e valores nos quais está inserido e em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações”. Trata-se de uma definição que contempla a influência da saúde física e psicológica, nível de independência, relações sociais, crenças pessoais e das suas relações com características inerentes ao respectivo meio na avaliação subjetiva da qualidade de vida individual. Neste sentido, qualidade de vida é definida como a “satisfação do indivíduo no que diz respeito à sua vida quotidiana”.
Qual vida não vale a pena?
Enquanto escrevo vem uma imagem da foto do Michael rodeado pelos filhos e é possível ver o sorriso largo e sua percepção da realidade. Também é nítida a coragem e entrega estampadas no rosto dele, como uma forma digna de encarar sua vida. Tinha felicidade por trás da dor. Impossível não pensar em outros tempos não tão longe assim, mas tempos extremamente cruéis de exclusão, onde matavam (como o médico fez com o Michael) as pessoas com deficiência sob a justificativa de não serem úteis para a sociedade.
Um momento igualmente cruel se repete em pleno século XXI e diante de uma crise mundial. E novamente as pessoas com deficiência - e também as pessoas negras - estão na roleta dos que não valem a pena.
É preciso se perguntar: até quando vamos nos deparar com tamanha violência? Será que não estamos usando a nossa voz o suficiente ainda? Ou será que de alguma forma estamos contribuindo para que situações como a de Michael e de muitos outros continuem a acontecer? O que estamos deixando de fazer?
Toda vida importa
De nada adianta se mostrar indignado sem fazer certos questionamentos. Essa é uma luta minha, sua e de todos. Preconceito e racismo são sistemas de opressão dos “brabos” e vão além das atitudes veladas, eles fazem a seleção de quem vai conseguir suportar por mais tempo a asfixia até a morte. Isso não importa para você? A mim, vidas importam.
Toda solidariedade à família de Michael e tantos que se foram, mas que amavam a vida e queriam ter alguém que os ajudasse a sobreviver. Parece que resistir, não sufocar, lutar, ser ouvido, ganhar espaço na sociedade, deixar de ser invisível é, sobretudo, a qualidade possível para muitas pessoas. E sabemos que viver com qualidade não é isso. Em nenhum conceito, em nenhum modelo de mundo. Para muito além da sobrevivência, uma existência digna, verdadeira, com respeito a qualquer forma de vida.
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