Mariana Reis é administradora de empresas e educadora física. É pós-graduada em Gestão Estratégica com Pessoas e em Prescrição do Exercício Físico para Saúde. Atua como consultora em acessibilidade e gestora na construção e efetivação das políticas públicas para a pessoa com deficiência em Vitória

Superação ou opressão?

A capacidade que temos em avançar no tempo, levando em conta nossas experiências, na verdade, seguir em frente, compreendendo o que acontece em nossas vidas, é superar

Publicado em 16/02/2021 às 02h00
Mulher fazendo ginástica
No esporte, superar era vencer todas as etapas para chegar ao movimento acrobático com técnica e segurança. Crédito: Yeko Photo Studio/ Freepik

Lá vem a dupla falar de superação. O tema é quente e o meu parceiro de coluna, o doutor em educação e pesquisador Douglas Christian Ferrari, também é. Somos também duas pessoas com deficiência e não estamos livres do uso arrebatador da palavra superação que teima em cair sobre nossos ombros. E quase sempre vem como uma chicotada. Não é fácil se esquivar.

Superação é um termo popular que autores, pessoas comuns e muitos profissionais, amam. Podemos dizer que a capacidade que temos em avançar no tempo, levando em conta nossas experiências, na verdade, seguir em frente, compreendendo o que acontece em nossas vidas, é superar. Aceitar nossas histórias e olhar para o agora.

Superação é repetição

No esporte, área na qual vivo intensamente, sempre compreendi superação como algo bem prático, do dia a dia. Como, por exemplo, quando eu precisava ensinar um movimento muito complexo na Ginástica. A cada dia ia repetindo os exercícios educativos até chegar no movimento propriamente dito. Superar era vencer todas as etapas para chegar ao movimento acrobático com técnica e segurança. Era um exercício diário. Um exercício de perceber todo o processo bem mais que o resultado final. Superar na ginástica, é treino. É repetição.

Mas quando a palavra é lançada ao vento para o lado de cá da pessoa com deficiência, principalmente quando essa se destaca, a superação vira um estigma. E reforça ainda mais outro estigma, a do coitadinho. São lados da mesma moeda. E sabe o que é pior? Tem pessoas com deficiência que caem no “conto da sereia”, reforçando a ideia de meritocracia, o individualismo e o alcance somente por esforço pessoal.

É cada uma!

É comum, muito mesmo, ouvir pessoas sem deficiência se utilizarem da palavra superação em relação a nós como um recurso de autoajuda, sabe? Sempre se referem a nós como exemplos, daí mandam assim: tá vendo? Se ele com esses "problemas'' todos conseguiu, então você também consegue. Outro bem bizarro é assim: colocam a foto de um atleta paralímpico treinando e escrevem: qual é a sua desculpa? Socorro! Colegas da minha área que atuam como personal trainer fazem muito isso.

Só pra terminar, porque temos tantos casos que seriam cômicos, não fossem trágicos, e que mandam assim também: ele ou ela “mesmo tendo” deficiência, conseguiu. Por que você não consegue? Senhor! São tantos absurdos que, é claro, vamos continuar com o tema por aqui ainda.

Você não tem que provar nada para ninguém

Vamos lembrar que todos nós nos superamos, com ou sem deficiência, em nosso cotidiano. Nossos alunos, por exemplo, saem de casa às 6 da manhã para trabalhar e às 17 horas vão para a faculdade assistir às aulas, e se superam todos os dias. Então por que as pessoas com deficiência estão relacionadas à superação? A resposta, caro leitor, você já compreendeu: somos usados como estimulantes para as pessoas sem deficiência. Uma palavra energética vital, que dá energia pra uns e suga a de outros.

Todos nós temos momentos complicados na vida e é exatamente aí quando a superação surge com força total. E a vida de todos sempre se reposiciona. O que não dá mais é manter a ideia de que temos que provar algo em tudo que fazemos, para alguém. Não temos, ok? Essa condição de que temos que provar nossas potencialidades, que muitos costumam chamar de capacidades, é fruto de uma sociedade normalizadora e meritocrática em que estamos afundados.

Muitas vezes, pessoas com deficiência chegam a uma posição social com muito sacrifício, dores físicas e sofrimentos emocionais. Isso não é superação, é opressão.

Não é raro ver pessoas se submetendo a essa exigência cruel e aí temos um outro grande fardo que é o capacitismo a partir da própria pessoa com deficiência. Ou seja, quando ela adere ao mito da superação e extrapola seus limites corporais, para difundir a ideia do super herói. Fazer o dobro que uma pessoa sem deficiência faz para provar algo. Além do esforço, é o capacitismo agindo, caro leitor.

Insuperável é a palavra respeito

Outro campo que relaciona pessoas com deficiência e superação é o esporte. Já repararam? Até quando vamos ser usados apenas e tão somente como exemplo de superação? Reiteramos que somos mais que isso. O mantra da superação, tão decantado (amo essa palavra) com relação às pessoas com deficiência, só reforça o outro mantra velado: o do coitadinho. Um baita reforço para a exclusão, sabia?

Estamos todos superando nossas dores e angústias, dias e lutas. Nos ressignificamos todos os dias até na superação que nos confronta. Todos aprendemos a recomeçar mesmo com o invisível que nos pegou de jeito sem tréguas. Entender mais a nossa engrenagem e a do próximo é treino diário.

Palavras acalentam mas também exaurem. Respeito é palavra boa de se ler, melhor ainda de se ver. Ela é a mola propulsora do viver. Deixo aqui solta mais uma palavra que pode ser usada sem moderação, melhor ainda, sentida: esperança. Esperança para seguir mesmo com que o sofrimento esteja na bagagem. Superar para avançar. Superar para compartilhar dos valores aprimorados, lapidados. Todos somos e podemos ser exemplos.

A Gazeta integra o

Saiba mais
opinião

Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.

Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.

A Gazeta deseja enviar alertas sobre as principais notícias do Espirito Santo.