O sítio, o frio da manhã bem cedo, o convite para tirar leite vindo do avô, a companhia dele, a minha infância, o cheiro de todas essas memórias. Para o ritual desses finais de semana que grudaram na lembrança, eu costumava usar uma roupa especial: a capa de chuva com capuz. A minha felicidade era puxar o zíper dela, que vinha da coxa até o queixo. Só o rosto ficava de fora. Meu avô ensinava a virar a galocha antes de calçá-la, para não correr o risco de ter um ser vivo ali. Leia-se cobra, inseto e afins. Essa era a parte mais cuidadosa e a que nunca esquecia de fazer.
Já paramentada, íamos até a cozinha colocar o chocolate na caneca de ágata, com meu nome escrito por minha avó – um cuidado e também uma regra, para que ninguém usasse a caneca de outra pessoa. Penso agora que também servia para saber quem sujou e não lavou. Ai de mim ousar usar a de outra pessoa. Com a minha avó as coisas eram diferentes. Ela escondia as balas e o meu avô, sorrateiramente, pegava. E de mãos dadas, íamos, em meio à neblina, para a primeira tarefa dele do dia.
Experiência com sabor
Ficava ali sentada, quietinha, enquanto ele ordenhava a Fanta Uva, nome carinhosamente dado a uma de suas vacas leiteiras. Meus olhos brilhavam para saborear o achocolatado. Pronto. Agora vamos colocar um pouquinho para a Mariana, dizia ele com o consentimento da vaca. Aquele leite branco feito algodão e consistente, se misturava ao chocolate em pó. Lembro do movimento circular que ele fazia precisamente para misturar o pó. Ficávamos ali em silêncio até esvaziar a caneca e fazer o caminho de volta.
Nunca esqueci o sabor dessa experiência e tamanha paciência do meu avô. E por longos períodos só entendia essa forma de tomar leite: vindo da Fanta Uva. Essas experiências conjuntas e inesquecíveis ficam gravadas na memória das crianças, na convivência com seus queridos (avós, tios, pai, mãe, primos, padrinhos). Quando há presença de verdade e algo útil, que tenha início meio e fim numa atividade, os valores ali construídos se tornam essência para uma vida inteira.
Vivenciar é viver e aprender
Gosto muito da frase de Vygostsky, um pensador importante em sua área e época, pioneiro no conceito de que o desenvolvimento intelectual das crianças ocorre em função das interações sociais e condições de vida. “O saber que não vem da experiência não é realmente saber”. Rodeada por alunos e sobrinhos, sempre que os observo, eles estão a construir histórias e, com isso, expressam vontades, reforçam sua identidade. Como adultos, não podemos fechar os olhos e deixar essa oportunidade escapar. Compartilhar desses momentos com a criança fará dela um adulto consciente e seguro.
É tão bom ter uma história para contar, não é mesmo? Me sinto tão criança, que escrevendo lembrei de tantas outras que não caberiam aqui. Viver tudo aquilo que se tem direito é bom demais e é parte fundamental da infância. Sujar os pés, mãos e rosto, sujar o tapete e marcar a casa inteira, tomar leite direto da fonte, viemos para deixar nossos passos, construir nossos caminhos. Então se você também se sente como uma criança que vai querer sempre brincar de viver, não perca tempo. Esse é o barato da vida.
Escutem as crianças
Neste isolamento que todos vivemos há de se ter cuidado com administração das emoções e do estresse dos pais. É importante pararmos para prestar atenção às necessidades reais da criança. Pisar no freio e criar estratégia para as suas demandas podem ser cruciais para aliviar um momento tão duro como esse. Acolha os sentimentos e converse, isso fará com que as crianças sejam consideradas e respeitadas.
Hoje é dia de estender os braços e guardar os abraços. Vai passar.
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