É médico, psiquiatra, psicanalista, escritor, jornalista e professor da Universidade Federal do Espírito Santo. E derradeiro torcedor do América do Rio. Escreve às terças

A maldição do idoso: quando a identidade é reduzida a uma palavra

Você deixa de ter uma referência que construiu durante décadas e passa a ser tratado na terceira pessoa do singular: “É seu avô? Como é o nome dele?”. E assim por diante

Publicado em 20/01/2025 às 23h00

Caríssimo leitor, pode procurar se quiser, mas ninguém descreve o poderoso Trump como idoso. Trump, isso, Trump aquilo, mas não idoso.

Se você por acaso for presidente dos Estados Unidos sua identidade não é transformada em genérico. Mas se for um pedestre e sofrer um acidente é logo deslocado para a insólita categoria: “Depois de invadir a calçada, caminhão atropela dois idosos”.

Ou então: “Idoso desapareceu na enchente do rio”.

Uma vez classificado na categoria de idoso, ninguém fala mais com você diretamente. A malvada identidade, mais do que genérica, apodera-se da sua existência. Você deixa de ter uma referência que construiu durante décadas e passa a ser tratado na terceira pessoa do singular: “É seu avô? Como é o nome dele?”. E assim por diante.

Essas gentilezas têm o único objetivo de acentuar a velhice se houver o mínimo indício da referida praga mortal: “Seu tio ainda caminha sozinho? Cuidado”. E põe medo, como se os demais não estivessem também submetidos a esse temor pelas ruas da cidade.

Minha senhora, fiel companheira dessas mal traçadas quinzenais, enfim, qualquer sinal de louvável sobrevivência neste mundo cruel, tal pessoa é jogada fora do baralho.

Se você conseguiu alcançar, graças a seus méritos, a tal certa idade, não conte pra ninguém se quiser ser respeitado. Existem grupos - às vezes incluindo até queridos familiares - que mergulham de cabeça para retirar tudo de você, o que muitas vezes inclui o bolso, sob o argumento de que o senhor ou a senhora morreu e esqueceu de deitar.

Idoso olhando no espelho
Idoso olhando no espelho. Crédito: Shutterstock

Felizmente, há na medicina profissionais ultracompetentes que se dedicam a conhecer o verdadeiro passar de anos e não o deixar de viver. Mas ainda é um risco a si mesmo permanecer com o direito que tem os vivos. É criado automaticamente um mundo que se sobrepõe a tudo.

Então.

A solidão é uma praga venenosa em qualquer idade. É justamente para esta situação que a maioria desses autênticos heróis são empurrados à força pelas circunstâncias e com a sua benevolente aquiescência, por exemplo, fingindo aceitar todas as imposições realizadas pelas pessoas amadas durante sua vida inteira.

Outro dia li um texto de Ruy Castro sobre o assunto: “Melhor idade é a P.Q.P”.

As dificuldades sexuais brindam todas as idades, mas basta ter percorrido uns aninhos que são consideradas inevitáveis. Felizmente paira no mundo científico internacional luzes sobre as impotências humanas independentemente da idade.

O austríaco Eric Kandel, detentor do Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina em 2000, aborda a vitória sobre os anos vividos com um olhar realista e benéfico, enfatizando que esse tempo, que varia de pessoa para pessoa, não significa perda irreversível de capacidades cognitivas. Pelo contrário, destaca a plasticidade cerebral como uma oportunidade de aprendizado e adaptação, principalmente na idade avançada.

Ele prova que embora algumas habilidades como a memória de curto prazo possam declinar um pouco, outras, como o conhecimento acumulado e a criatividade, tendem a se manter e melhorar. Além disso, encoraja a adoção de hábitos saudáveis, como exercícios físicos, atividades cognitivamente desafiadoras, socialização e alimentação equilibrada, para promover o bem-estar durante essa fase da vida.

Esse tempo é uma chance, geralmente às vezes maldosamente negada, de se reinventar e explorar novas possibilidades, ao invés de apenas focar as limitações. E, com isso, dificultar a alegria e o bem-estar da pessoa.

Dorian Gray, meu cão vira-lata, com seus 82 anos, já foi para a academia.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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