É médico, psiquiatra, psicanalista, escritor, jornalista e professor da Universidade Federal do Espírito Santo. E derradeiro torcedor do América do Rio. Escreve às terças

Eu queria ter sido o Belchior

Veio do Ceará direto para as calçadas de São Paulo como todo nordestino. Salvo da fome por sua santa protetora, Elis Regina, que estava longe de ir para o céu

Publicado em 29/10/2024 às 03h20

Ele foi ou é igual meu ego ideal ou ideal do ego, tanto faz. Concluiu que o ser humano é inviável e sumiu, por absoluta falta de identificações.

Veio do Ceará direto para as calçadas de São Paulo como todo nordestino. Salvo da fome por sua santa protetora, Elis Regina, que estava longe de ir para o céu. Nesse instante da vida o rico inconsciente fabricou o que para mim é a mais rica das metáforas que conheço: “Ano passado eu morri, mas este ano eu não morro”.

Dizia que a música era para adocicar e eternizar a letra. A senhora aí dedilhando Rachmaninoff ao piano, não acha? Vai agora me dizer que a música deixa todo o espaço para a fabricação da loucura, chamada pensamento, do qual não se conhece a origem exata e, ao pensar na mesma coisa, logo muda: aumenta, diminui, some, vira lágrimas, sorrisos e outras milongas mais.

O cantor Belchior
O cantor Belchior. Crédito: Divulgação

Chopin aos 10 anos, quando compôs a “Valsa do minuto”, onde estaria? Já o “Concerto de Varsóvia”, com a Polônia invadida pelos russos, sem a menor cerimônia, foi forçado. Aí dá para imaginar. E olha que Putin nem era nascido.

Percebendo a consistência que Belchior (pronuncia-se Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes) viera dar aos famosos e fabricantes de dinheiro e fama, chamaram o retirante. Atendeu. Foi consciente, como revelou em uma extensa entrevista, uma pérola da filosofia.

De vez em quando confessa o banal do cotidiano. “Foi por medo do avião que eu peguei pela primeira vez na tua mão", cantou para a mulher. Modéstia às favas, a Rachel que, ao contrário, só falta arrancar meus dedos diante de um mínimo tremilique aéreo,  jamais compôs para mim um concerto para piano e ou uma orquestra que bem mereço.

Revelou que a capacidade de reproduzir o novo era a arte de seus pais que faziam tremer o barraco: teve 21 irmãos e só puderam assistir a televisão do quinto rebento em diante. Mas explica: “Vocês não sabem o que se pode fazer nos intervalos comerciais”.

Em “Como nossos pais” mistura a ideia da repetição com o novo. E dá liga.

Mesmo sem dinheiro para tanto, eu tinha, de um jeito ou de outro, todos os discos de Belchior, que mal cabiam no quarto para três na república pornô estudantil “A Moribunda”, dividindo espaço com o pôster da minha amada italiana Sophia Loren (meus amigos invejosos diziam que minha paixão não era correspondida, que ela gostava mesmo era do Marcello Mastroianni).

Um dia Belchior sumiu pra sempre.

Tenho a impressão de tê-lo visto passando tarde da noite em Ipanema.

Enfim, iria conhecer o ídolo.

Cheguei perto

É o Belchior????

- É.

- E não disse mais nada.

Dorian Gray, meu cão vira-lata, rosnou triste como o resto do Brasil.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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