Não tem uma pessoa que não tenha visto um post com a palavra “militância” nos últimos dias. Até porque, só na última semana, a busca pelo termo aumentou mais de 800% no Google. E esse burburinho todo nasceu das várias discussões que Karol Conká e Lumena têm protagonizado dentro do “BBB 21”.
Muitos internautas estão contra as atitudes das duas sisters no reality da Globo e até colocando, equivocadamente, em xeque a validade das lutas das bandeiras que elas defendem – uma delas é a trans, como bem polemizou Lumena sobre o tema quando os meninos se maquiaram em uma ação promocional do programa.
Jared Amarante, jornalista e escritor, acabou de lançar seu sexto livro da carreira e, na obra, aborda justamente muito do que a dupla fala dentro do “BBB”. “Ariel”, seu último lançamento, narra a história de um jovem trans, negro e gordo que é vítima de todas as fobias que agridem essas suas características. No imaginário, ele cria um mundo paralelo em que é coroado príncipe, mas na realidade não é bem assim.
“Eu acredito que a violência será combustível para mais violência, seja ela psicológica ou física. O que, às vezes, nos falta perceber é que colocamos nosso ego à frente de muitas questões. Então, exageramos, ferimos, excluímos e subimos no palanque no horário errado e sem o discurso acolhedor. Tudo isso está acontecendo por parte de Karol Conká e Lumena, que se mostram desafinadas. Uma militância, quase sempre, pautada na agressividade, opressão, punição, apenas me faz pensar que o militante quer ser a vítima porque não quer ser contestado, mas sair como o sofredor, o ferido”, fala Jared.
E continua: “Talvez elas, em algum momento, se percebam exaustas dessa militância, porque a gente cansa desse excesso de encenação, que sempre leva a seguinte questão: ‘os outros brothers é que estão errados?’. Não precisamos estar no comando o tempo todo pra nos sentirmos aceitos ou amados; isso se chama insegurança. E acho que o BBB 21 tem refletido isso também. A soberba é tanta que às vezes tenho a impressão de que a militância extremista não está engajada e nem preocupada com algo ou alguém, mas em aparecer e alimentar dia a dia uma figura que nem elas mesmas talvez acreditem”.
No livro, você retrata a história de um menino trans, gordo e negro que se vê mergulhado em questionamentos e se fecha em um mundo só seu, em que ele é príncipe. Como foi a concepção da história?
Este é meu sexto livro, mas eu ainda não tinha feito nada tão lúdico, fantasioso e que ao mesmo tempo fosse tão profundo e com temáticas urgentes. E, além de unir essas características, sempre foi um desejo ter um protagonista preto, trans e gordo. Então eu pensei, este é o momento. Minha concepção veio da vontade de ver esses corpos no lugar de realeza; lugar que lhes é negado o tempo todo. E, junto desse desejo, a minha maior inspiração está no diálogo que tive com essas coletividades, onde busquei, mesmo que minimamente, compreender seus mundos, acolher seus sentimentos e refletir sobre suas realidades. Outra coisa importante, é que me inspirei ainda mais quando me fiz o seguinte questionamento: por que não estamos falando das crianças trans, pretas e gordas? Elas existem o tempo todo, não só quando uma data comemorativa salta aos nossos olhos no calendário. A concepção dessa história é para conscientizar, divertir, emocionar e psicoeducar, por isso temos o prefácio do psicólogo Wellington Oliveira; ilustrações de Nathan H. Borges; além de comentários de artistas e entrevistas com homens e mulheres trans do Brasil.
No fim, imagino que a moral da história seja uma mensagem de igualdade e respeito. Mas essa mensagem é construída por vias tradicionais ou não? E é essa a mensagem que quis passar?
O livro passa, na verdade, inúmeras mensagens, que são como ‘sacolejos’ ao longo do caminho. São starts que vamos tendo sobre como lidamos com o tempo, como nos preocupamos mais com a beleza exterior, como julgamos pessoas, como já nascemos com tudo padronizado, bem como isso é letal. Além de falarmos, também, do valor das amizades, da escuta sincera, de como você se percebe no mundo. Claro que essas mensagens deságuam no respeito, na busca por um mundo mais justo. Mas, em "Ariel – a travessia de um príncipe trans e quilombola", tudo é bem lúdico, sensível, harmonioso e cheio de referências quilombolas. Os diálogos permitem muitas reflexões porque são filosóficos e nos faz confrontar nossas ideias e visões de mundo. Mas, obviamente, não posso deixar de reafirmar que uma das mensagens mais potentes desta obra é da que pessoas trans, pretas e gordas, são sinônimos de beleza, conquistas, competência. São príncipes, protagonistas, donos de si. E isso deve ser fomentado cotidianamente.
E de que forma a travessia desse menino pretende gerar identificação e conscientizar as pessoas sobre a validade de ser trans, gordo e negro no Brasil?
Acredito que o racismo, a transfobia, a gordofobia, tiram das pessoas o pertencimento, ou seja, as tornam invisíveis, como se recebessem um atestado de inutilidade social. Então uma obra como essa, uma travessia como a de Ariel, que representa a travessia de milhões de pessoas trans, gera identificação e ‘devolve’ um pouco de pertencimento, traz representatividade e autoestima, aquece debates, toca corações, muda a sociedade. Até que uma criança como Ariel afirme: eu existo! É muito sobre isso. Importante nunca esquecermos que, infelizmente, somos o país que mais mata a população trans; que desprestigia o corpo gordo no primeiro olhar, que nega o afeto e destaque ao povo preto. Então, sem dúvidas, essa obra é potente. Ela conscientiza, sensibiliza, porque esse é o poder das histórias. Inclusive, me faz lembrar uma frase muito pertinente de Freud: ‘Seja qual for o caminho que eu escolher, um poeta já passou por ele antes de mim’. Há lugares que só a arte chega!
Na trama, o menino acaba sendo vítima de transfobia e racismo pela própria família, algo bastante comum nos lares brasileiros. Como autor e estudioso do tema, por que acha que isso acontece? E qual é o melhor jeito de combater essa questão dentro das famílias?
Acredito que a falta de conhecimento e, principalmente, a preguiça de buscá-lo é que tem gerado tanta violência e preconceitos. A vida é múltipla e cada um tem sua identidade de gênero, uma forma de se reafirmar no mundo, de se sentir pertencente ou não, e de viver suas transições. Os pais devem abrir os olhos para elaborar, em alguns casos, o ‘luto’ do filho que queriam, para receber o nascimento do filho possível, porém de um filho feliz e saudável. As famílias precisam escutar mais, afinal temos duas orelhas, não é mesmo? Uma criança trans não está pedindo nossa opinião ou validação, ela está dizendo quem é e, consequentemente, gritando por respeito. Não vejo muitas formas tão eficazes de se combater racismo e os mil e um preconceitos desde país e mundo, se não for por meio do estudo, dos diálogos, das atitudes. Chega dessa ideia estúpida, violenta e burra de que o mundo é pautado no binarismo.
Nós estamos ligados em um reality, o BBB 21, que acabou transformando a imagem da militância para algo diferente do que ela originalmente se propõe. Karol Conká e Lumena têm sido duramente criticadas por esse motivo e acabaram se perdendo ao longo do programa. Esse tipo de atitude enfraquece a luta de outras causas, como as demandas da comunidade LGBTQIA+?
Eu acredito que a violência será combustível para mais violência, seja ela psicológica ou física. O que, às vezes, nos falta perceber é que colocamos nosso ego à frente de muitas questões. Então exageramos, ferimos, excluímos e subimos no palanque no horário errado e sem o discurso acolhedor. Tudo isso está acontecendo por parte de Karol Conká e Lumena, que se mostram desafinadas. Uma militância, quase sempre, pautada na agressividade, opressão, punição, apenas me faz pensar que o militante quer ser a vítima porque não quer ser contestado, mas sair como o sofredor, o ferido. E, ainda, esse cenário das histéricas mais uma vez me faz lembrar da sabedoria de Freud: ‘Por trás de todo excesso existe uma falta’. Será que preciso levantar a voz porque guardo em mim medos demais? Inseguranças que me atravessam o tempo todo? Acho que essa reflexão é válida, o que não quer dizer que as estou inocentando de suas opressões muito bem percebidas por um país inteiro. Talvez elas, em algum momento, se percebam exaustas dessa militância, porque a gente cansa, uma hora, desse excesso de encenação, que sempre leva a seguinte questão: ‘os outros brothers é que estão errados’. Não precisamos estar no comando o tempo todo para nos sentirmos aceitos ou amados; isso se chama insegurança. E acho que o BBB 21 tem refletido isso também. A soberba é tanta que às vezes tenho a impressão de que a militância extremista não está engajada e nem preocupada com algo ou alguém, mas em aparecer e alimentar dia a dia uma figura que nem elas mesmas talvez acreditem. Gentileza costuma gerar gentileza, e se não vemos isso, na vida, estamos matando pessoas, sonhos, potenciais. E incentivando os outros a fazerem o mesmo com suas existências.
E como tem sido a recepção do livro pelo que tem acompanhado e visto até agora?
Muito especial. Tenho recebido feedback de vários leitores, de diversas regiões do país. E ouvir deles o quanto a história é lúdica, sensível e forte, tem trazido um sentimento de alegria e missão cumprida. Porque entendo que estão compreendendo o propósito dessa obra. E viva o Ariel de cada lugar deste Brasil e do mundo.
Qual é a expectativa desse trabalho para 2021?
Que Ariel continuei chegando muito longe, alcançando este país todo e, também, fora. Que possamos celebrar a existência, a força, a resistência, a beleza, a competência dos corpos pretos, trans e gordos.
"Ariel: a travessia de um príncipe trans e quilombola" está à venda pela loja virtual da Editora Giostri.
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