Nossa cultura tem como padrão ensinar para as crianças a desregulação. Mas para entender isso, primeiro precisamos entender o que é a autorregulação e sua importância. Quando você sente sede e bebe água, está regulando seu corpo. Quando sente vontade de fazer xixi e vai ao banheiro, também. Quando há um acúmulo de cortisol no seu corpo, ele tende a buscar também formas de se regular, e sua reação pode ser ficar agitado, ficar nervoso, precisar dormir ou ficar quieto por um tempo para respirar fundo. Quando você está comendo e se sente saciado, para de comer. Ou pelo menos, deveria.
Mas por que isso não acontece com muitas pessoas? Porque na nossa cultura, o que se entende é que criança que come ‘bem’ é criança que come ‘muito’, e então desde pequenos ouvimos ‘come, come, come pra mamãe ficar feliz’. E a criança aprende a comer ‘mais uma colherzinha’ para felicidade de sua mãe (que não deveria depender disso para ser feliz, mas falaremos disso em outro momento). Aprende a comer muito para depois ter direito à sobremesa e, assim, aprende a ignorar o sinal de satisfação, reconhecendo-o apenas quando não cabe mais nada ou a barriga dói.
Dessa forma, a criança aprende a ignorar os sinais de seu corpo, aprendendo que o adulto conhece o corpo dela mais que ela mesma.
Ensinamos isso ao dizer coisas como: “nem doeu, foi só um susto”, “isso não é motivo para chorar”, “mais uma colherzinha” ou “vai fazer xixi agora!”. Nas creches vemos, inclusive, o absurdo de acordarem as crianças de suas sonecas porque os pais não querem que elas durmam, porque decidiram pagar creche cara, porque acham que isso vai ajudar no sono da noite (dica: não ajuda, só acumula cortisol e atrapalha o sono da noite). Isso ocorre porque os adultos acham que sabem tudo sobre a criança. Ela aprende isso e desaprende a ouvir seu corpo quando tem sono, quando tem fome, quando sente saciedade.
Quando o adulto tem pressa no aprendizado da criança, isso também acontece! Como quando fazem um desfralde coletivo numa escola, insistindo que a criança deva deixar as fraldas mesmo que seu corpo lhe diga o contrário. E as consequências disso são a criança não aprender verdadeiramente a lidar com seu corpo, segurando demais o xixi ou o coco sem saber a hora de soltar. Ou até soltando demais e tendo vários ‘escapes’ que, em verdade, são sinais de que essa criança não desfraldou de verdade, só ficou sem fralda mesmo.
Nanda Perim
PsiMama
"O adulto tem pressa no aprendizado da criança, isso também acontece! Como quando fazem um desfralde coletivo numa escola, insistindo que a criança deve deixar as fraldas mesmo que seu corpo lhe diga o contrário. E as consequências disso são a criança não aprender verdadeiramente a lidar com seu corpo, segurando demais o xixi ou o cocô"
O mesmo acontece com emoções e sentimentos. Os adultos têm a audácia de dizer para as crianças como devem ou não se sentir, o que é ou não motivo para reagirem de cada forma, e a criança aprende que nem seus próprios sentimentos ela sabe identificar. Dizemos que algo não é motivo para chorar, quando a criança obviamente sentiu que é. Entendemos que se é ‘bobeira’ para nós, deveria ser para elas, quando naturalmente as coisas terão pesos diferentes para adultos e crianças.
Ora, se queremos que elas aprendam a lidar com grandes problemas quando maiores, necessariamente precisamos permitir que lidem com problemas menores enquanto pequenas. Ao invés de desdenhar do tamanho do problema, precisamos entender a importância que têm para a criança, nos colocar no lugar dela e ensinar como se lida com isso. Assim, com a experiência e o tempo, possibilitamos que elas possam aprender a lidar com problemas cada vez mais complexos.
No entanto, não é o que fazemos e acabamos perdendo a oportunidade de ensinar a lidar com problemas. E pior ainda: ensinamos a ignorar seus próprios sentimentos porque eles não são adequados. Não deveriam acontecer naquele momento, para aquela situação. Ensinamos a criança a reprimir isso.
E qual o grande problema disso? Ao reprimir, ela não aprende a lidar com esses sentimentos, e quando eles vierem com toda força, ela não vai ter a mínima ideia do que fazer. Ou seja, em verdade estamos levando a criança a não saber se comunicar com seu próprio corpo, não saber administrar as próprias emoções, não conseguir expressar genuinamente e da melhor forma.
E essas crianças se tornam adultos que não sabem lidar com raiva e frustração, que não sabem parar de comer quando estão satisfeitos, que não se permitem chorar em várias situações, que seguram demais o xixi e têm infecções urinárias frequentes.
E, claro, vamos lembrar que existem as consequências indiretas, como insegurança, co-dependência, explosões emocionais, somatização... Precisamos permitir que as crianças aprendam o que muitos de nós, adultos, ainda estamos aprendendo: a ter uma relação conectada e próxima com nossos próprios corpos. Saber sentir, saber lidar, perceber os sinais do corpo e saber interpretar. Saber agir conseguindo se respeitar, entender os próprios limites, aceitar. E para isso precisamos parar de DESREGULAR as crianças. Dando ESPAÇO e TEMPO para que elas possam aprender a conversar com o próprio corpo. Parar de achar que sabemos mais que eles sobre a própria necessidade, a própria vontade e o próprio tempo.
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É abrir mão do controle e apoiar a descoberta de autocontrole da criança.
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