Acionar a justiça e entrar com uma ação para resolver alguma questão relacionada a animais é algo comum. Mas e quando a ação é curiosamente assinada por 22 gatos?
Pois é exatamente isso que os gatos Mãe de Todos, Mostarda, Pretinha, Escaminha, Bubuda, Guerreiro, Wesley, Pérola, Medroso, Juliete, Assustado, Preta, Atleta, Aparecido, Rainha, Esposo, Doida, Branca, Oncinha, Maria-Flor, Matuta e Sol fizeram. Entraram com uma ação (Processo nº 0830734-83.2021.8.15.2001) em João Pessoa, Paraíba, quando o síndico de um condomínio proibiu os moradores de continuarem lhes dando água e alimento.
Já faz 34 anos que os bichanos - no caso, agora, seus descendentes - frequentam o espaço. Aliás, antes mesmo de o prédio ser erguido eles já estavam lá. E sempre foram cuidados pelos moradores que se responsabilizam pelo bem-estar de todos, alimentando, dando água e levando ao veterinário para realizar os procedimentos anuais de vacinação e vermifugação e, quando necessário, em caso de alguma enfermidade. A ação cita, ainda, que todos os bichanos, atualmente, estão castrados.
Tudo corria bem, até a chegada de uma nova moradora que começou a implicar com os animais, levando o síndico do condomínio a notificar os condôminos proibindo que cuidassem dos bichanos. Diante disso, famintos, os gatinhos começaram a procurar alimento nos sacos de lixo.
O processo traz como justificativa que a retirada arbitrária e constante dos alimentos pode trazer prejuízos aos animais, como fome, desidratação e, consequentemente, diversas doenças. Os autores da ação - os 22 gatos - estão sendo assistidos juridicamente pelo Instituto Protecionista SOS Animais e Plantas, através do Núcleo de Justiça Animal da Universidade Federal da Paraíba e seu coordenador, Francisco Garcia.
Segundo Garcia, na ação os 22 gatos, autores, pleiteiam uma indenização por danos morais, tanto individuais, quanto coletivos, assim como exigem que o condomínio não proíba os moradores de colocar alimento e água para eles.
“Nós nos embasamos, entre outras coisas, no Decreto Federal nº 24.645/34 que possibilita no parágrafo 3º de seu artigo 2º, o ingresso de animais como autores de ação, desde que sejam assistidos por Ongs ou entidades de proteção animal, como é o caso do Instituto Protecionista SOS Animais e Plantas”, explica.
O condomínio, ressalta Garcia, tomou essa atitude abrupta, mas não está tomando nenhuma medida para que esses animais sejam realocados, recebam alimentação e água e tratamento veterinário de outra forma, que não por parte dos moradores.
“Nós temos, aqui no Estado, a lei mais avançada que protege, defende e cria direitos fundamentais para os animais e o Código de Direito e Bem-Estar Animal da Paraíba, que estabelece em seu artigo 5º esses direitos fundamentais. Então, com base nesse Decreto e Código, que no parágrafo 3º, de seu artigo 7º, estabelece a responsabilidade de pessoas físicas e jurídicas em relação aos animais que são abandonados nos condomínios e que estão sob suas governanças, como é o caso em apreço, entramos com a ação. O condomínio não tomou nenhuma medida para que os felinos não fossem abandonados no local, então, dessa forma, eles atraem para si, à luz de nosso Código, a responsabilidade de cuidar desses animais. E, agora, o condomínio não quer fazer isso e ainda está proibindo os moradores de fazê-lo, o que é uma irresponsabilidade”, conclui.
Controvérsia entre juristas
A advogada Sara Peixoto Arrivabeni, especialista em Direito Empresarial e uma amante e entusiasta da proteção aos animais, explica que esse caso chama atenção para uma controvérsia que paira no Direito já há algum tempo. Juristas, com diversas visões de mundo, divergem sobre o tratamento mais adequado a ser dispensado aos animais em geral, em especial àqueles que vivem de uma forma mais próxima, alguns até considerados verdadeiros membros das famílias brasileiras, como são os cães e gatos.
Ela ressalta que o Direito Ambiental mais tradicional, pautado no Direito Civil que trata especialmente sobre a vida privada das pessoas, dispensa aos animais um tratamento sob o viés antropocêntrico, ou seja, o ser humano encontra-se no ápice da cadeia, enquanto os demais animais são tratados como bens ou objetos. Já o Direito Ambiental mais moderno adota um viés biocêntrico, no qual os animais, assim como os seres humanos, são merecedores de uma maior proteção, bem como um tratamento especial no que tange a alguns direitos considerados indispensáveis a uma existência digna, como alimentação, saúde e proteção física e psíquica.
“Nesse caso específico, a partir de uma visão mais moderna e que prima pelo bem-estar dos animais em geral, antes de mais nada, é essencial que os bichanos possam ser protegidos pelo Direito e, consequentemente, pelas respectivas instituições do Estado. A forma como se dará essa proteção, deve ser objeto de análise e de futura regulamentação pelo Congresso brasileiro, representante dos anseios dos cidadãos. A questão que fica é se a sociedade brasileira ainda permanece, em sua maioria, com uma visão antropocêntrica de mundo perante os animais, os colocando em um degrau abaixo no que concerne à capacidade de ser titular de direitos, bem como de, pessoalmente, postular sobre esses mesmos direitos em juízo”, explica.
Por fim, Sara lembra que o tema é complexo e que claramente o Código Civil brasileiro é insuficiente e não acompanhou a evolução das relações sociais que pretende regular, baseado em um sistema que não mais se sustenta, ao classificar animais como objetos de direito e não sujeitos de direito. “Assim, é preciso debater e analisar as novas teorias acerca da personalidade jurídica dos animais que buscam garantir a salvaguarda dos direitos intrínsecos, neste caso dos bichanos”, conclui.
A adoção é sempre o melhor caminho
Já a advogada Nathalia Tardin explica que a vida em condomínio impõe diversas restrições, com o intuito de possibilitar a convivência harmônica entre os moradores, conforme artigos 1.333 e seguintes do Código Civil e da Lei dos Condomínios 4.591/64.
“As conveniências e interesses devem estar condicionados às normas de boa vizinhança, de maneira a não causar dano ou incômodo aos demais moradores, nem embaraço à segurança, higiene, saúde e sossego. Assim, o regimento interno pode impedir a utilização das áreas comuns para atividades incompatíveis com a habitação, tal como a criação de animais de qualquer espécie”, explica Nathalia.
Ela ressalta, também, que no caso da criação comum, embora seja de louvável intenção, desonera os tutores da criação responsável dos animais. “O procedimento mais apropriado seria a adoção, dentro da unidade privativa do condômino. E ao adotar, o tutor precisa estar atento aos cuidados fundamentais para manter os pets sempre saudáveis, proporcionando alimentação, vermífugo, vacina e garantir o seu bom comportamento”, lembra.
Para ela, há controvérsia sobre os animais demandarem em juízo em nome próprio. “O processo judicial tem alguns pressupostos, um deles é a capacidade processual, que é a possibilidade de ser parte de um processo, como autor ou réu. Demandar em juízo é ser autor. Em regra, a parte defende um direito dela, mas em alguns casos a lei permite que outra pessoa defenda um direito por você. A prerrogativa, nesse caso, caberia ao Ministério Público para crimes ou maus-tratos, ou entidades protetoras, em legitimidade extraordinária. Isso significaria que o MP é o autor, mas defendendo um direito de outro (dos animais)”, explica.
Na sua opinião, o melhor caminho seria a adoção dos gatinhos. “Amo a ideia da adoção! Amor e carinho são preceitos da vida civilizada. E devemos abraçar a adoção com todas as alegrias e responsabilidades que ela implica”, conclui.
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