Com a pandemia, Huandra Seibel, fundadora da Ong Pra Mia, que ajuda animais resgatados das ruas, começou a perceber que, com o isolamento social, o consumo de embalagens plásticas aumentou consideravelmente. Foi a partir desse momento que ela resolveu colocar em prática o Projeto de Tampinhas Plásticas, que até então estava engavetado.
"Nessa época, eu estava pleiteando uma vaga no Mestrado de Engenharia e Desenvolvimento Social da Universidade Federal do Espírito Santo e o meu anteprojeto era sobre o consumo de plástico e a Economia Circular no Espírito Santo. E, com isso, essas temáticas referentes à sustentabilidade começaram a me tocar de uma maneira especial. Foi assim que decidi investir definitivamente em nosso projeto para conseguir captar mais recursos para a Ong", conta Huandra.
Ela explica que a orientação, inicialmente, era para que as pessoas começassem, no período de isolamento social, a guardar as tampinhas em suas casas, com o objetivo de ajudar na castração de animais resgatados das ruas ou de famílias carentes que têm pets, mas não possuem condições financeiras para realizar a cirurgia. E, aliada a essa causa animal, contribuir para a preservação do meio ambiente.
Coletores feitos de tampinhas de plástico
E o projeto deu tão certo, que hoje são 204 pontos de coleta no Espírito Santo, onde as pessoas podem fazer a entrega das tampinhas plásticas. Além disso, foi criada toda uma identidade visual para o projeto por meio de coletores personalizados.
“Foi uma verdadeira saga para chegar ao coletor ideal, que atendesse nossas expectativas e coubesse no bolso. Até que conseguimos um fornecedor do Rio de Janeiro que cria produtos com tampinhas plásticas. Ele desenvolveu um coletor de tampinhas montável (para não ocupar muito espaço no caminhão de frete) e compramos, inicialmente, 60 com nossos próprios recursos. Só que a partir do 101°, começamos a vendê-los para os locais que desejam ser ponto de coleta. Mas é importante lembrar que para ser ponto de coleta não é obrigatório adquirir o coletor personalizado, quem quiser pode improvisar um recipiente. O principal, o que vale mesmo é participar”, alerta Huandra.
A fundadora da Ong ressalta, ainda, que o adesivo dos coletores de tampinhas traz o mascote Hope e a gatinha Panterinha, para incentivar a adoção de gatinhos pretos (sempre rejeitados por conta de superstições antigas). “Eu só tenho a agradecer, porque através do projeto já vendemos aproximadamente 10 toneladas de tampinhas plásticas e lacres de alumínio (a única exceção às tampinhas) e castramos com o valor das vendas 49 animaizinhos (entre machos e fêmeas, cães e gatos).
Huandra, explica, também, que uma tampinha pesa, em média, 1,1 grama. Atualmente, são vendidas por R$ 1,7 o quilo. Segundo ela, o valor da castração varia muito conforme a clínica e altera dependendo do peso e do sexo do pet. “Para castrar uma gata, por exemplo, precisamos de cerca de 142 quilos de tampinhas. Para castrar uma cadela, por sua vez, de 270 quilos mais ou menos”, informa Huandra.
A força simbólica de uma tampinha
Mas o que representa, por exemplo, o resgate de uma, apenas uma tampinha, para o meio ambiente? Para o professor do Departamento de Economia e coordenador do Mestrado em Engenharia e Desenvolvimento Sustentável da Ufes, Ednilson Silva Felipe, algumas questões ambientais no nível da conscientização ainda carecem de forças simbólicas.
“A questão é, quando necessitamos de argumentar e provar que qualquer coisa é muito importante, é porque a sociedade ainda não se conscientizou. As coisas, que nós já internalizamos, não precisam de argumentos. Mas, infelizmente, estamos longe disso, mesmo nas questões mais óbvias. Quantas vezes ainda precisamos argumentar que o cinto de segurança é importante, que beber e dirigir não dá certo, que educação é fundamental para o país? São coisas que, apesar de muito difundidas, boa parcela da sociedade ainda permanece reticente. No caso ambiental, isso é bem mais precário. Até hoje, nesse caso, gastamos muita lábia para tentar convencer as pessoas. Então, o resgate de apenas uma tampinha serve como elemento simbólico de convencimento para que a sociedade passe a perceber como essa atitude é essencial. Enfim, necessitamos urgentemente de uma campanha voltada para essa temática”, garante Felipe.
A falta de conscientização
Para ele, esses pequenos-grandes gestos, como o Projeto de Tampinhas Plásticas da Ong Pra Mia, trazem esperança para um mundo mais alinhado com a preservação do meio ambiente. Felipe explica que todas as iniciativas são válidas e importantes e precisam ser estimuladas.
“É um processo, um movimento em que vai se agregando mais e mais pessoas. E isso tem acontecido, embora numa velocidade que não é a que desejamos. Há ainda muita resistência e pessoas que acham que nada disso é importante. Contudo, embora essas iniciativas sejam fundamentais, elas, infelizmente, não são suficientes. Ainda é necessário avançar em leis, regulamentos e normas que tornem essa postura obrigatória. Mas não chegamos a esse ponto. Como disse, é um processo onde estamos dando os primeiros passos. Ainda há muito que avançar”, lamenta.
O professor do Departamento de Economia da Ufes explica que essa conscientização da sociedade é um processo muito lento que envolve vários elementos num arranjo complexo.
“Para começar, a reciclagem e o reuso de materiais sustentáveis estão acontecendo agora, nesta geração. A maioria das pessoas não foi ensinada a isso e a cultura arraigada ainda é de descarte. É um processo inter-geracional e vai precisar de uma mudança cultural para que aconteça de forma definitiva. Em segundo lugar, é um processo tecnológico, mas não existem tecnologias maduras e baratas para a reciclagem de todos os materiais. Algumas tecnologias de reaproveitamento já são popularizadas, como o reuso do papel. Mas do plástico não, pois ainda é bastante cara e não disponível de forma mais geral. E em terceiro lugar, não há economicidade garantida para todas as reciclagens. Em alguns casos, até hoje, não são economicamente viáveis. Essa complexidade de cultura, tecnologia e economia faz com que esse processo ainda não seja latente na sociedade, o que é lamentável”, afirma.
Cadeia de reaproveitamento
Além disso, Felipe explica que a cadeia de reaproveitamento de materiais recicláveis também é complexa. A valorização dos subprodutos ou dos co-produtos é muito diferenciada em cada elemento. O reaproveitamento do alumínio, por exemplo, envolve uma cadeia mais valorizada, a do plástico menos. A do papel, por sua vez, é extremamente desenvolvida.
“A cadeia do plástico é muito incipiente até hoje. O plástico é aproveitado muito mais em cadeias informais e de baixo valor tecnológico. Isso leva a uma situação em que a procura por recicláveis se diferencia muito. O reaproveitamento de tampinhas de forma massiva e valorizada ainda vai depender de avanços tecnológicos e econômicos”, conclui.
O caminho das tampinhas
Mas, afinal, qual é o fluxo das tampinhas a partir do momento que são vendidas até serem reutilizadas e transformadas em algo útil para a sociedade?
Segundo Felipe, não há apenas um destino e para alguns casos o volume viável tem que ser muito alto. Ao final, o caminho que percorrem depende muito de qual indústria está lá na ponta reaproveitando o material. É uma cadeia complexa, mas pouco estruturada.
“Na maioria dos casos, um fornecedor de reciclável sozinho não dá conta do volume necessário à viabilidade econômica. Então passa-se, primeiro, pelo desafio de juntar o volume necessário e entrar com tecnologias para descoloração e mudança dos formatos. E para onde vai, dependerá de qual indústria está demandando, mas isso ainda é pouquíssimo estimulado. E é uma pena”, lamenta.
A coleta seletiva
O professor do Departamento de Economia da Ufes explica, ainda, que o processo de coleta seletiva também é caro e complexo. Segundo ele, as pessoas acreditam que ao separar o lixo, já estão realizando a coleta seletiva, mas não é bem assim. Além da separação, é necessário passar por outros processos de seleção, destinar a usinas de reciclagem e depois achar indústrias que comprem esse material reciclado. É toda uma cadeia que precisa ser desenhada.
“Muitas vezes, faz-se a coleta seletiva, mas deposita tudo junto, com os não recicláveis. Outras vezes, não se tem o galpão de separação, não se tem a indústria que compra para reciclar e não se tem a empresa que compra o reciclado. Ativar toda essa cadeia não é fácil e envolve muitos investimentos. Então, se olharmos os dados oficiais, veremos muitas prefeituras fazendo coleta seletiva, mais nas cidades maiores, as menores são bem poucas”.
Ainda assim, segundo ele, só coletar é o primeiro passo. Os outros processos dessa cadeia ainda estão engatinhando. “Aqui, no Espírito Santo, e no Brasil, são muitos os desafios. Alguns países avançaram, mas o ‘princípio do poluidor pagador’ é fundamental. Em alguns países, o cidadão paga um imposto relativo ao volume de lixo que ele gerou, que é usado especificamente para estruturar a cadeia. Essa contribuição que existe hoje de ‘taxa de lixo’ na conta do IPTU não é suficiente”, esclarece.
Mas, Felipe salienta que quando uma, apenas uma pessoa, cria o hábito, definindo um local para ir juntando, separando e reaproveitando as tampinhas, ela vai enraizando o comportamento e passando adiante essa atitude, até que ela se torne natural, tanto para ela, quanto as pessoas de seu convívio. “E isso é fundamental”.
Atitude simples
Para Huandra, o Projeto de Tampinhas Plásticas da Ong Pra Mia é apenas um exemplo desse gesto que todos podem compartilhar. Juntar tampinhas é uma atitude simples que contribui não só para a preservação do meio ambiente, mas para muitas causas sociais. “Só juntando forças conseguiremos construir um mundo melhor para as novas gerações, esse é o melhor exemplo que os pais podem passar aos seus filhos e os professores aos seus alunos. Acredito que, se cada um fizer a sua parte, ainda dá tempo de mudar o nosso destino”, alerta.
Prova de que esse é o caminho certo, explica Huandra, é que um dos pontos altos do projeto da Ong é ver o engajamento dos alunos de dezenas de escolas em juntar as tampinhas plásticas. “Muitos professores e pedagogos têm levado a ideia para dentro das escolas e tem sido um momento precioso, onde as crianças aprendem sobre respeitar os animais em situação de rua e sobre sustentabilidade”, conclui.
O que fazer para ajudar o Projeto de Tampinhas Plásticas da Ong Pra Mia
- Vale juntar todos os tipos de tampas plásticas existentes: refrigerante, desodorante, amaciante, água mineral, remédio/vitaminas, xampu, pasta de dente, fio dental (sem a lâmina), cremes, entre outras.
- É recomendável lavá-las, secá-las e separá-las por cores, isso facilita o trabalho dos voluntários.
- Depois, é só deixar em um dos pontos de coleta. Quando o coletor - ou qualquer recipiente destinado a receber as tampinhas no local - estiver cheio, um dos voluntários da Ong passa para recolhê-las.
- Todas as tampinhas de plástico recolhidas e passam pelo processo de separação de cores. Só depois são levadas para as bases de venda. E quando elas estão lotadas, a Ong aciona o comprador, que passa de caminhão recolhendo-as após o conferimento da pesagem. O repasse do valor é realizado no final do mês.
- Com o valor arrecadado, a Ong projeta a quantidade de castrações que podem ser realizadas. O comprador possui uma empresa especializada em resinas de plásticos. Ele tritura as tampinhas de plástico, já separadas por cores, e vende essa resina triturada para indústrias que produzem produtos e embalagens plásticas. Assim, as tampinhas se tornam produtos e embalagens no futuro.
Serviço
São 204 pontos de arrecadação cadastrados. A relação completa está disponibilizada no link da bio do Instagram @ongpramia.
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