Uma jornalista que ama os animais, assim é Rachel Martins. Não é a toa que ela adotou duas gatinhas, a Frida e a Chloé, que são as verdadeiras donas da casa. Escreve semanalmente sobre os benefícios que uma relação como essa é capaz de proporcionar

Os animais aos olhos de Deus

Confira a entrevista com Kenner Terra, pastor batista, professor na Faculdade Unida de Vitória, escritor, teólogo e doutor em Ciências da Religião. Ele explica como a relação homem-animal aparece na Bíblia e em outras religiões

Publicado em 08/02/2022 às 02h03
O pastor batista e teólogo Kenner Terr explica a relação homem-animal na Bíblia
O pastor batista e teólogo Kenner Terra explica a relação homem-animal na Bíblia. Crédito: Divulgação

Recentemente, dia 21 de janeiro, perdi a minha gatinha Frida, com 18 anos. Ela estava sofrendo bastante, ficou três vezes internada de dezembro até o dia em que virou “estrelinha”. Na verdade, nos últimos tempos a cada dia ficava pior. Foi muito dolorosa - e ainda está sendo - a sua partida. Não tiro da minha cabeça o seu olhar de despedida, muito difícil. Mas, por outro lado, sei que descansou e estará eternamente em nossos corações.

Só quem vive anos com um animal de estimação ao seu lado, é capaz de compreender tamanha dor. Enfim, perdemos nossa “filha de quatro patas” que durante anos nos deu o seu amor incondicional e nos trouxe, muitas vezes, conforto naquelas horas em que tudo parecia que ia desabar. Frida era uma grande companheira, onde a gente estivesse, lá estava ela, de dia, de noite, de madrugada.

Durante esse tempo sem ela, muitas coisas vieram à minha cabeça. E entre o luto e a saudade, comecei a pensar como são os animais aos olhos de Deus, quais são as citações da Bíblia, no caso do cristianismo, que destacam essa relação homem-animal. E também nas outras religiões. Foi quando resolvi entrevistar o pastor batista, professor na Faculdade Unida de Vitória, escritor, teólogo e doutor em Ciências da Religião, Kenner Terra.

Nesta entrevista, ele explica o que o Livro Sagrado fala sobre maus-tratos, proteção e sacrifício dos animais, sobre Noé e a perspectiva da preservação das espécies e sobre a nossa afetividade para com os animais. Além disso, fala se eles têm alma e para onde vão quando morrem e, ainda, como outras religiões os enxergam. Tudo aos olhos de Deus.

O mundo está correndo um sério perigo, com a exploração indevida do meio ambiente e o uso desordenado dos recursos do planeta. Isso faz com que os animais sofram - muitos, inclusive, já estão em extinção. Levando-se em consideração que o documento central para a fé de metade do planeta, a Bíblia, traz muitas referências aos animais, como o Livro Sagrado prega a relação homem-natureza?

A Bíblia apresenta Deus como criador e sustentador da criação. Em todo texto sagrado, Deus mostra-se preocupado com a preservação ambiental. Em Gênesis, primeiro livro da Escritura, por exemplo, o Senhor cria a humanidade e exige que “guarde/preserve” e “cultive” a natureza (Gn 2.15). As duas expressões no original dão ideia de responsabilidade e proteção, pois a natureza e seus bens são como presentes graciosos do Criador. Nesse mesmo contexto, é interessante observar que a bênção da fecundidade e multiplicação, na expectativa de povoação do mundo, é primeiramente dirigida aos animais e só depois aos homens e mulheres (Gn1.20-23), o que mostra íntimo cuidado tanto com os seres humanos, quanto com os animais. Essa preocupação ambiental está presente em várias partes da Bíblia. A Escritura defende uma relação justa, responsável e sensível entre seres humanos e natureza. Aliás, esse é o termômetro da presença da imagem de Deus em nós. Em suma, a Bíblia defende a promoção da justiça socioambiental, o que inclui a preservação dos animais.

Muitos animais sofrem maus-tratos nos dias atuais - existe até lei para protegê-los. A Bíblia faz alguma citação sobre maltratar animais? E a proteção animal aparece também no Livro Sagrado?

Como disse acima, o Deus da Bíblia é senhor da criação e todos os seres vivos são parte de seu projeto de preservação, graça e cuidado. Por isso, atacar sua obra seria o mesmo que se colocar contra seu próprio artista e idealizador. Obviamente, por conta do contexto histórico de seus livros, a Bíblia não poderia fazer uma discussão avançada sobre direitos dos animais ou mesmo preservação ambiental. Todavia, como tenho mostrado, a Palavra de Deus tem, dentro dos seus limites socioculturais, intuições importantes a respeito da preservação e proteção dos animais. Em Êxodo 23, na determinação do ano sabático, exige-se que depois de sete anos a terra fique um tempo de repouso, sem ser utilizada. Nesse período, os pobres poderiam comer livremente os alimentos deixados do cultivo dos anos anteriores e os animais descansariam de seus trabalhos exaustivos (Ex 23.12). No ano sabático, então, interrompia-se o ciclo da exploração predatória e a justiça aos animais era lembrada. Ou seja, a Bíblia mostra-se preocupada com os direitos dos seres humanos e, ao mesmo tempo, protege os animais. Em outro texto emblemático, quando era comum alimentar-se de animais da mata, Deus orienta que ao encontrar um ninho de pássaro com a mãe e filhotes, o correto seria tomar estes e deixar a mãe para que não houvesse a extinção da espécie (Dt 22.6-7). O texto é tão sensível a respeito da preservação dos animais a ponto de afirmar que quem considerasse tal lei viveria bem e prolongaria seus dias (Dt 22.7) – tal qual a promessa para quem honrasse pai e mãe (Ex 20.12). Textos como esses servem de denúncia contra os maus-tratos aos animais.

E o que a Bíblia fala sobre a perspectiva do homem em relação aos animais?

Como disse, na teologia da criação o ser humano não é o centro, como se todas as outras coisas criadas fossem inferiores. Pelo contrário, na ordenação do mundo, a terra, os animais e a humanidade deveriam viver em harmonia. A propósito, pelo enredo de Gênesis, em um primeiro momento previa-se que tanto os seres humanos quanto os animais teriam a mesma fonte de alimento: todas as ervas que dão sementes e todas as árvores que dão frutos (Gn 2.29-31). No modelo primordial, não haveria derramamento de sangue dos animais. Isso seria mudado, à luz da narrativa bíblica, só depois do aprofundamento da maldade humana.

A jornalista Rachel Martins com sua gatinha Frida. Ela vai morar eternamente em nossos corações
A jornalista Rachel Martins com sua gatinha Frida. Ela vai morar eternamente em nossos corações. Crédito: Divulgação

Partindo do ponto em que a Bíblia faz citação a Noé, que construiu uma arca e colocou dois animais de cada espécie lá dentro, só isso já não revela a importância dos animais para Deus?

Com certeza. Esse episódio bíblico mostra o interesse de preservação das espécies e como Deus cuida de toda sua criação, incluindo os animais. Não é sem razão que macho e fêmea são levados para dentro daquela embarcação salvadora.

Em relação ao sacrifício de animais, como o Livro Sagrado trata essa questão?

A Bíblia precisa ser lida dentro do seu contexto. Por isso, como era comum no Mundo Antigo, o sacrifício tinha uma função religiosa. Entretanto, essa prática não desconsiderava o valor dos animais. Pelo contrário, eles ganhavam caráter sagrado e participavam de um sistema importante de fé e construção de identidade do povo. Além disso, o sacrifício era de animais específicos, não colocava em risco qualquer espécie e sua carne, uma vez sacrificada, servia de alimento. Então, o sistema sacrificial do AT não prejudicava a criação. Ainda, segundo o NT, Cristo toma o lugar dos animais e os sacrifícios, do ponto de vista do Cristianismo, não são mais necessários, o que significa, em algum nível, um tipo de preservação.

Existe uma tese de que Jesus seria vegetariano ("Ele expulsou aqueles que vendiam animais para sacrifício e consumo para fora do templo, instituiu o batismo no lugar dos sacrifícios animais, e disse que Deus ‘requer misericórdia e não sacrifício’ e eliminou os sacrifícios animais completamente na Última Ceia"). Isso procede?

Não podemos projetar expectativas modernas sobre narrativas do Século I. Por isso, não dá para afirmar com segurança que Jesus não consumia carne ou fosse vegetariano. Por outro lado, esse item alimentício era artigo de luxo. Se hoje em dia comer carne, em termos globais, é para poucos, na época de Jesus o número de privilegiados era ainda menor. Consequentemente, o mestre talvez não comesse carne mais por questões sociais do que por razões ambientais.

Atualmente, muito se discute sobre a “humanização” dos animais, que são considerados, hoje, membros da família. Existem muitas críticas nesse sentido. Eu, por exemplo, chorei muito com a morte da minha gatinha recentemente, sinto um vazio no coração. Aos olhos de Deus, como isso pode ser enxergado?

Lamento a morte de sua gatinha e me solidarizo contigo. Em relação à pergunta, seguindo as imagens bíblicas, podemos afirmar que o amor aos animais é bíblico. E se temos algum animal de estimação no convívio da família, naturalmente criamos laços afetivos, tornando-o parte do lar. O grande biblista Milton Schwantes dizia que em Gênesis a narrativa da criação refletia a casa israelita idealizada: pai, mãe, muitos filhos e pequenos animais do campo. O Deus da Bíblia nos convida a sermos sensíveis aos animais, e esta experiência de afetividade por nossos bichos de estimação reflete uma forma muito bonita de amor à criação divina.

Os animais têm alma? Para onde eles vão quando morrem?

Os textos bíblicos, no máximo, dizem que os animais são criação de Deus. Porém, o conceito de alma tal qual o Novo Testamento apresenta (realidade imaterial na qual está a consciência humana) não pode ser aplicado aos animais. A despeito de algumas tradições religiosas crerem em vida pós-morte (reencarnação, um lugar no cosmos, etc.) de todos os seres vivos, a fé cristã atribui eternidade e existência além-morte somente para os seres humanos. Apesar disso, as lembranças felizes, animadas por muita afetividade, preservam nossos amiguinhos vivos no coração.

Cada religião tem uma forma de enxergar os animais. Mas de forma geral daria para dizer como o judaísmo, o budismo, o islamismo pregam isso?

No Judaísmo, por serem parte da criação divina, os animais são tratados com muito respeito e cuidado. No Talmude, obra da tradição judaica, encontramos o Tza'ar ba'alei chayim (“sofrimento das criaturas vivas”), mandamento que proíbe causar sofrimento desnecessário aos animais. No Budismo, a vida é um sistema interconectado e os animais fazem parte dessa rede da existência, o que lhes dá um lugar de especial importância. Para o Islamismo, os animais devem ser tratados com misericórdia. Por outro lado, alguns de seus intérpretes entendem que o Alcorão proíbe ter cão como animal de estimação, sendo permitido somente para proteção e caça. A igreja Católica afirma que animais são criaturas de Deus e devem ser preservados. Francisco de Assis, grande personagem da Igreja, chamava os animais de irmãos e não aceitava que fossem tratados como coisas, mas companheiros dos seres humanos. Na encíclica “Lautado Si”, o Papa Francisco convidou os fiéis católicos a se preocuparem com os impactos ambientais e os prejuízos disso na vida dos animais. Nesse importante documento, Sua Santidade demonstra preocupação com temas como tráfico ilegal de animais, migração e extinção de espécies. Os evangélicos, por serem plurais, não têm uma opinião unitária e formal a respeito. No entanto, como leitores da Bíblia, tratam os animais como criaturas de Deus e dignos de cuidado e amor.

Poderia indicar cinco partes da Bíblia que o senhor considera mais relevantes onde os animais são citados?

Gênesis 2.15; Êxodo 23.10-13; Deuteronômio 22.6-7; Deuteronômio 25.4; Provérbios 12.10.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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