Toda semana, a técnica de enfermagem, Carol Milagres, deixa sua casa pela manhã e segue para o plantão no Hospital Jayme Santos Neves. Ela sabe que tanto o sofrimento pode estar a sua espera, quanto às alegrias. Afinal, dentro de uma unidade hospitalar, se por um lado existe o medo da morte, por outro, também está à possibilidade da cura.
Mas em tempos de Covid-19, essa rotina de ir para o plantão tomou outra proporção. “É uma doença nova, por isso, nós, profissionais da saúde, nos sentimos mais vulneráveis. Ao mesmo tempo em que precisamos cuidar dos pacientes, ficamos preocupados com nossos familiares, que moram na mesma casa, afinal, trata-se de um vírus altamente contagioso. E isso gera ainda mais insegurança, medo, ansiedade e estresse”, conta.
O medo é tanto que Carol preferiu enviar o filho, Pedro, de 11 anos, para a casa do pai. “Não posso nem pensar na possibilidade de contaminar meu filho. É a primeira vez que fico tanto tempo longe dele, foi uma decisão muito difícil, que me deixou de coração partido. Todos os dias eu penso se fiz a coisa certa. A gente conversa diariamente pelo telefone, mas a saudade é enorme. E ele também fica preocupado comigo, pergunta sobre os pacientes, se eu estou bem, se estou com algum sintoma. Tento acalmá-lo, mas ele tem acesso às notícias, e não temos como evitar isso”.
Carol explica que agora quando sai de casa dá um vazio enorme no seu coração por não poder beijar a abraçar o filho. Mas em compensação, segundo ela, tem a Valentina, sua gatinha. “É ela que tem me confortado nesses dias. Quando eu saio, ela vai para o beiral da varanda e fica ali até eu entrar no carro”, lembra.
Na volta, conta Carol, faço o trajeto até em casa em silêncio, procuro esvaziar minha mente. “E quando chego, Valentina está lá, de novo, me esperando no beiral. Minha vontade é abraçá-la de imediato, mas sei que não posso, antes preciso realizar todos os procedimentos de higienização. E, depois, vou direto para o banho, e ela vai atrás. Fica no tapete, me olhando, e a gente conversa, só quem tem um animal de estimação pode entender o que isso significa. Devagar, vou me acalmando, sentindo aquela troca de afeto. Quando finalmente a pego no colo, ela se aconchega, e sinto aquele delicioso ronronar, é como se nada mais existisse. Cinco minutos de brincadeira, e pronto, a mente esvazia e se enche de uma energia boa. Sempre disse para minha mãe que essa gata acha que é um cachorro, eu pego a bolinha, jogo, ela busca e me traz de volta. Quem consegue resistir a isso? Não existe ansiedade, estresse ou medo que perdure diante do amor incondicional dos animais. E Valentina tem uma particularidade, um desenho de coração no pelo, e isso só pode ser um sinal. Ela, inclusive, foi achada na rua no Dia dos Namorados. Foi um presente delicioso”, lembra.
Cão terapeuta
A capacidade dos animais de trazer conforto a alma humana já tem comprovação científica. Tanto, que em Denver, nos Estados Unidos, durante essa pandemia, um cachorro foi treinado para aliviar o estresse dos profissionais de saúde dentro do hospital.
Trata-se de Wynn, um cão aspirante a terapeuta, que passou a fazer parte da equipe médica que atua na linha de frente do setor de emergência do Rose Medical Center, segundo informações da CNN. O labrador, de um ano, tem ajudado a dar ânimo a esses profissionais.
Wynn fica em uma sala separada, com luzes apagadas e música de meditação. Uma foto postada nas redes sociais, de uma profissional ao lado do labrador, fez o maior sucesso nas redes sociais, provando, sim, o quanto o carinho de um animal pode ajudar a aliviar qualquer sentimento negativo nesse momento tão singular do planeta.
Cultura do toque
Para a psicóloga, Milena Careta, essa troca faz todo sentido. “Principalmente na nossa cultura, onde o brasileiro é muito suscetível ao toque”, explica. “Quando você encontra um amigo, por exemplo, é normal cumprimentá-lo com dois beijinhos, mas, agora, não podemos fazer isso, estamos em um momento fora de qualquer normalidade. Imagine isso, então, dentro do âmbito familiar, essa restrição na troca de afeto?”.
Milena cita como exemplo o caso da cunhada que é médica e está na linha de frente contra a Covid-19. “Ela não está podendo ficar com os filhos, beijá-los e abraçá-los, então os seus cachorros estão dando esse suporte afetivo, a energia necessária para que ela possa enfrentar essa batalha diária, que não é fácil”, conta.
Segundo Milena, o animal traz esse conforto. “Com ele, nesse momento difícil, a pessoa pode ter contato, preservar essa cultura do toque, que alivia a alma, diminui o medo da morte, tão próxima de cada um de nós neste momento. É terapêutico, no sentido de se sentir amado. E é uma troca verdadeira. Existe uma relação de confiança, aí, mesmo sendo um animal de estimação. É comprovada a capacidade dos pets de pressentir o estado de espírito dos donos. E nesse momento, isso pode ser primordial. Ele brinca, lambe, tem um olhar afetuoso, e isso tudo, certamente, faz o profissional de saúde esquecer a dor por alguns momentos. Ajuda a esvaziar a mente. E o que está lá fora, neste momento, fica lá fora”.
Mas Milena faz um alerta. “Animal de estimação não é um objeto, é um ser vivo, e dependente. Sim, ele pode trazer muitas alegrias para uma casa, mas exige, também, uma série de responsabilidades por parte dos donos. Então, esse isolamento por si só não pode ser o único motivo de trazer o pet para fazer parte da família. Porque a pandemia vai passar, mas o animal não, ele vai continuar ali, e não pode, simplesmente, ser abandonado depois”, alerta.
Conforto animal
A enfermeira-chefe do Cias, Rúbia Giuberti, também está no batalhão de frente contra a Covid-19. Ela diz que esse estado permanente de alerta, porque toda hora chegam vários pacientes com sintomas da doença, gera muita ansiedade, estresse e medo.
“A preocupação é enorme, de se contaminar, não poder mais dar assistência a quem mais precisa de você no momento, no caso os pacientes, e deixar a empresa desfalcada de um profissional primordial. E o pior, levar esse vírus para dentro de casa, pois temos avós, pais, marido e filhos. Impossível não ficar estressada, ansiosa e com medo diante disso tudo”, diz.
Rúbia tem um filho de 13 anos, que é asmático e, portanto, está no grupo de risco. “Pensei até em deixá-lo com minha mãe, mas ela mora com minha avó de 93 anos. Como fazer? O jeito está sendo tomar todas as precauções aqui em casa de higienização e manter o mínimo de contato possível com meu filho. E meu marido também é da área de saúde. É muito triste não poder estar próximo do meu menino. E ele também sofre, fica preocupado. Isso dói muito”.
Mas Rúbia também tem o alívio de poder conviver com suas duas cadelas, Bila e Princesa, e seus três gatos, Frederico, Berenice e Meia-Noite. Eles estão sendo meu suporte nesses dias. Já eram, mas agora essa relação se intensificou mais ainda.
“A Bila é extremamente carinhosa. A partir do momento que piso em casa, ela não desgruda mais de mim. Eu acho que ela pressente como foi o meu dia, a minha angústia, afinal não é fácil estar ali, com a dor dos pacientes, que sentem medo e precisam ficar isolados, sem os familiares, e praticamente sem nenhum contato mais próximo com nós, enfermeiros. Depois de fazer toda a higienização, eu sei que posso dar carinho a ela, e essa troca é muito boa. E assim é também com todos os outros. Os gatos, por exemplo, quando eles começam a ronronar no meu colo, me sinto purificada, calma, tranqüila, cheia de esperança na vida. É uma renovação de energia que só quem tem pets em casa é capaz de entender. Eles são uma válvula de escape nesse momento de isolamento social”.
Este vídeo pode te interessar
Rúbia, além de enfermeira, é também voluntária no abrigo de cachorros e gatos Vira Lata, Vira Luxo. “Se as pessoas soubessem como um animal faz toda a diferença em momentos como esse, teríamos muitas mais adoções ou possibilidade de lar temporário. Mas, claro, isso só pode ser feito com muita responsabilidade, porque um animal é um ser que sente como a gente, mas é dependente. Então, não adianta adotar um pet, para depois abandoná-lo”, explica. “Essa decisão precisa de muito amadurecimento”, alerta.
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.