Parece até mentira, mas “A Filha Perdida”, lançado pela Netflix no último dia do ano, é a primeira adaptação de uma obra de Elena Ferrante dirigida por uma mulher. Em sua estreia na direção, Maggie Gyllenhall leva para as telas o livro homônimo da misteriosa autora italiana (ninguém sabe a identidade real dela) com um filme que toma algumas liberdades em relação à obra original, mas que mantém sua essência: a angústia e o desconforto.
“A Filha Perdida” é a história de Leda Caruso, uma mulher de meia-idade em férias em um balneário grego. A narrativa alterna a estadia de Leda na cidade com sequências de seu passado, quando vivia ao lado das duas filhas e do marido e antes de ingressar na carreira acadêmica.
Interpretada por Olivia Colman, no presente, e Jessie Buckley, no passado, a personagem é complexa desde o primeiro momento. Leda aprecia a paz inicial da praia, que logo é interrompida por um grupo de turistas americanos barulhentos - é verão na Europa, afinal. Em meio ao caos instaurado pela família que chega à praia, Leda observa com mais atenção uma jovem mãe, Nina (Dakota Johnson), e sua filha pequena, Elena (Athena Martin Anderson). Quando a jovem Nina se perde na praia, Leda participa da busca e acaba criando laços com a mãe.
Maggie Gyllenhall foge da estrutura que seria convencional, com alguma narração para conduzir o espectador ao ponto de vista de Leda. Ao invés disso, acompanhamos toda a história sob seu olhar, mas o texto nunca parte para o didatismo. As magistrais atuações de Colman e Buckley fazem a personagem crescer a cada cena, nem sempre positivamente - Leda é uma mulher angustiada que olha para seu passado com nostalgia, mas também com uma certa dose de culpa.
Leda quase nunca fala sobre suas decisões, mas vamos aprendendo sobre elas com o tempo. O texto é primoroso ao apresentar as duas versões da protagonista, mulheres separadas por quase duas décadas, e é incrível como ele consegue conectá-las. Vemos a Leda de Buckley se transformar na Leda de Colman de forma orgânica. É como se a personagem do passado estivesse presa em contraposição à mulher livre que vemos na narrativa principal.
As idas e vindas temporais nos fazem entender a personagem e seus atos. Nada é simples no mundo de Elena Ferrante, e Gyllenhall consegue captar essa característica do texto da italiana. “A Filha Perdida”, até pelo material original, lembra muito o cinema italiano contemporâneo de nomes como Paolo Sorrentino e Luca Guadagnino na maneira que conduz a história e utiliza as localidades a seu favor.
Gyllenhall e a diretora de fotografia Helene Louvart fazem com que o filme respire, mas Leda nunca parece totalmente confortável mesmo quando em paz. Não é como se ela estivesse de férias no paraíso; a ilha grega em que se encontra tem seus atrativos, mas parece já ter visto dias melhores. Essa ambientação ajuda na construção da psique da protagonista e funciona como um complemento para o espectador entender as emoções da personagem.
“A Filha Perdida” é um filme intimista que mostra muito e fala pouco. Gyllenhall também é muito inteligente ao não julgar as escolhas de Leda; a diretora e o texto constroem as viradas desde o início e deixam que nós, espectadores, façamos o juízo de valor. Concordando ou não com as decisões, vemos seus reflexos na Leda de Olivia Colman.
No terceiro ato, o filme se distancia um pouco do livro. Gyllenhall deixa a conclusão da jornada de Leda mais poética e subjetiva quando finalmente vemos a personagem plena, leve e livre da culpa que carregou durante quase toda vida adulta.
É estranha a decisão da Netflix de lançar “A Filha Perdida” no último dia do ano. A estreia de Maggie Gyllenhall na direção é brilhante, com um texto intimista conduzido de forma impecável. É quase inexplicável que tenha demorado tanto para uma mulher assumir a direção de uma história de Ferrante, mas o resultado é incrível.
“A Filha Perdida” é um dos melhores filmes de 2021 mesmo tendo sido lançado no último dia do ano. Um filme intimista, mas complexo ao lidar com maternidade, escolhas, feminilidade e culpa, mas também uma história de liberdade - a vida pode ser maravilhosa, mas nunca simples.
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