É uma pena que a série espanhola “Alma” tenha tido seu lançamento na Netflix ofuscado por outra obra voltada para um mesmo público, a péssima “Echoes”. Criada pelo roteirista Sergio G. Sanchez (dos bons “O Impossível” e “O Orfanato”), “Alma” é muito superior à série estrelada por Michelle Monaghan (o que não é muito difícil) e se aproxima narrativamente de obras como “Dark” e “Equinox”, com mistérios, folclore europeu e um muito bem-vindo clima inicial de estranhamento.
A série espanhola inicialmente mostra um grupo de jovens em uma viagem para comemorar o término do ensino médio. Somos brevemente apresentados a eles e algumas das relações saídas daquele grupo, tudo em recortes, de forma estranha, mas já destacando quem serão os personagens que terão importância na série. No caminho de volta para a pequena cidade em que moram, o ônibus que os leva encontra uma densa neblina e acaba sofrendo um trágico acidente que causa a morte de vários jovens.
No hospital, Alma (Mireia Oriol) acorda muito machucada e em total amnésia - não reconhece seus pais e não faz ideia do ocorrido. O primeiro episódio é muito eficaz em construir a dúvida e o mistério, com estranhos acontecimentos que podem ou não ser frutos do trauma sofrido pela personagem-título e com arcos de outros personagens importantes, como Tom (Álex Villazán), desenvolvidos sem pressa.
“Alma”, a série, depende de que o espectador se sinta na pele de Alma, a protagonista, para que sua narrativa ganhe força. Às voltas com os traumas do acidente e praticamente reconstruindo sua identidade a partir do que outras pessoas lhe contam, Alma é uma folha em branco e passamos a enxergar tudo a partir daquele ponto, tão perdidos quanto ela. Quando o primeiro episódio chega ao fim, é impossível não seguir em frente.
Principalmente em seu primeiro ato, a série usa muito bem os ganchos para prender o espectador. Os episódios constroem tensão a partir da dúvida e usa alguns sustos bem ao estilo jump scare para lembrar o público da essência de terror da história. Desde o início o texto abre cada episódio com trechos de contos folclóricos sobre profecias, maldições e organizações secretas que obviamente se conectarão ao arco principal. Essa pegada mais de terror folclórico faz lembrar a ótima dinamarquesa “Equinox”, mas sem a mesma complexidade - esse clima, porém, é abandonado com o tempo.
Após introduzir seu universo, seus personagens, construir dinâmicas e estranhezas, “Alma” desacelera e parte para um melodrama com ares de terror sobrenatural. O roteiro passa a se dedicar às relações entre aqueles jovens, pois são elas as responsáveis por tudo na série. Assim, aos poucos vamos entendendo mais sobre tudo o que aconteceu e as consequências do acidente para cada jovem.
Essa desacelerada quebra o ritmo narrativo e mergulha “Alma” em uma breguice que segue até o fim, mas não extingue o terror - a série tem algumas sequências bem gráficas e brevemente gore. O roteiro brinca com a nossa expectativa, nos conduzindo e até nos enganando para alguns caminhos e pistas antes de sua grande virada. É interessante como essa virada não é guardada para os episódios finais, dando ao texto tempo para desenvolver as consequências e o peso daquela informação; ao mesmo tempo, o espectador digere o que acabou de consumir.
É bom notar como a grande revelação é ensaiada pela série antes e se encaixa com o que foi visto até aquele momento. O roteiro espalha pistas e cenas aparentemente de pouca importância, mas que se conectam adiante e potencializam a surpresa que talvez até já fosse esperada, mas dificilmente da forma como ocorre. É justamente pela eficiência prévia da condução do roteiro que o excesso de didatismo utilizado posteriormente para explicar tudo o que foi mostrado até aquele ponto incomoda.
Após a virada, a série tem momentos enfadonhos ao nos obrigar a rever muito do que já foi mostrado, mas agora sob outro olhar e com novas informações. Essa recontextualização até funciona e acrescenta novas camadas à história, mas poderia ser mais curta, o que enxugaria a série.
Com nove episódios, “Alma” se prolonga muito mais do que o necessário e se perde nos melodramas de seu segundo ato. Quando reencontra o ritmo, nos episódios finais, a série de Sergio G. Sanchez se torna novamente mais atrativa e ágil - apesar de um pouco mais longos, os episódios finais são menos cansativos que os do meio da temporada.
Ao fim, “Alma” é uma boa série de terror sobrenatural, com ótimas fotografia e trilha sonora que ajudam a construir a tensão necessária para a história. A série não é perfeita e funcionaria melhor como uma minissérie, mas, à medida que o fim se aproxima, fica claro haver desejo de novos e desnecessários arcos. A jornada de Alma, na qual a série da Netflix se sustenta, se resolve de forma plenamente satisfatória. Sem o arco da protagonista e a estranheza inicial, uma segunda temporada talvez seja uma grande perda de tempo construída em torno do que há de mais descartável na série.
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