É curioso que “As 7 Vidas de Lea”, série francesa da Netflix, tenha estreado apenas uma semana após a ótima segunda temporada de “Boneca Russa”, pois ambas utilizam premissa e até uma dinâmica bem similar. Enquanto na série estrelada por Natasha Lyonne a protagonista encontra uma forma de viajar ao seu núcleo familiar no início dos anos 1980, a trama francesa adaptada do livro “The 7 Lives of Léo Belami”, de Nataël Trapp, coloca a jovem Léa voltando ao início dos anos 1990, quando seus pais ainda eram namorados.
Léa (Raïka Hazanavicius, em sua estreia) é uma jovem prestes a completar 18 anos e sem muitas perspectivas de vida na pequena cidade em que mora. Em uma festa regada a muitas drogas, Léa acaba em um canto isolado e encontra um cadáver não-identificado. Na mesma noite, ao dormir, ela acorda em 1991 e no corpo de Ismael, um jovem de ascendência árabe, da sua idade, e com uma relação próxima ao casal que, mais tarde, se tornaria pais de Léa. Ah, é bom ressaltar, Ismael também é dono do corpo encontrado por ela 30 anos depois.
A reação inicial é interessante, com Léa se adaptando ao corpo e àquele mundo que ela nunca conheceu - é também um momento em que o espectador se habitua às duas vozes da protagonista, a primeira como o corpo que ocupa e a segunda, em conversas internas, como se falasse sozinha. No passado, descobrimos quem foi Ismael e que ele dividia com a mãe de Léa, uma mulher conservadora, uma banda punk e o sonho de viver de música. É interessante também, ainda que tudo aconteça rápido demais, a paixão que Léa desenvolve por Ismael, uma escolha do texto que abre diversas possibilidades narrativas interessantes e até confere ao texto uma dose de uma improvável comédia romântica.
Tal qual Nadia na última temporada de “Boneca Russa”, Léa retorna para seu lugar no tempo após o fim do dia e utiliza as informações que colheu no passado para tentar corrigir o rumo de alguns acontecimentos como a própria morte de Ismael, há muito dado como desaparecido.
Para a surpresa da protagonista, quando ela novamente dorme e acorda em 1991, ávida por solucionar a morte de Ismael, ela o faz no corpo de outra pessoa, sua mãe. Fica apresentada, então, a dinâmica da série, com Léa acordando cada dia no corpo de uma pessoa diferente, algumas bem óbvias, mas outras que representam escolhas bem surpreendentes.
Ao contrário de “Boneca Russa”, que acaba oferecendo um mergulho num universo de estranhezas, “As 7 Vidas de Léa” é o mais convencional possível que se pode esperar de uma série do tipo - uma comparação até mais justa seria com a divertida “De Volta aos 15”, protagonizada por Maísa para a mesma Netflix. Assim como a série brasileira, a francesa aposta na nostalgia e na transformação cultural, com vestimentas peculiares da época, alguns anacronismos e o óbvio estranhamento tecnológico dos jovens de hoje em um mundo mais analógico. O texto é óbvio ao apontar para quanto a sociedade mudou nessas três décadas, mas o faz de forma correta com questões de corpos, sexualidade, gênero e preconceito racial.
A produção faz muito bom uso da trilha sonora para representar o início dos anos noventa nos meses que antecederam o lançamento do clássico “Nevermind”, disco do Nirvana que moldou a cultura da época. Assim, o punk/indie de bandas como Pixies, L7, Sonic Youth estava na beira de se tornar popular, mas ainda era a música de grupos menores, dos rebeldes da escola. “As 7 Vidas de Léa” capta bem esse espírito com a ótima utilização de músicas consagradas e originais, contribuição essencial de Jean-Benoît Dunckel, colaborador habitual de Sofia Coppola e que trabalhou também em “Euphoria”.
Narrativamente, como já dito, a série é convencional, mas isso não é necessariamente ruim. Alguns episódios não são tão interessantes, funcionando apenas para apresentar as regras da viagem no tempo da série. Ainda assim, o fato de Léa viver cada dia no corpo de uma pessoa diferente faz com que enxerguemos a história por diferentes olhares, o que contribui bastante no desenvolvimento dessas personagens e no da própria Léa, que passa a entender melhor as escolhas e as dores de seus pais. Por mais que o texto busque a verdade sobre Ismael, é Léa quem vai sendo aos poucos desvendada diante dos olhares do espectador.
“As 7 Vidas de Léa” não tem a mesma genialidade de “Boneca Russa”, mas acaba tratando de temas semelhantes e consegue surpreender em sua conclusão. Com bons personagens e boas motivações, o roteiro ensaia diversas possibilidades de fim para a história e até se aproxima de uma saída mais fácil em determinado momento, mas opta por um caminho mais delicado que pode tanto encerrar a série quanto oferecer a ela possíveis novas temporadas. Ao fim, com uma narrativa agradável, bom humor e sensibilidade, a série francesa da Netflix é uma opção acima da média no catálogo da plataforma.
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