Torcuato Luca de Tena (1923 - 1999) foi um dos grandes intelectuais espanhóis do século XX. Jornalista, escritor e acadêmico, ele acabou expulso do jornal de sua família, em 1973, por insistir em um pensamento conservador, monarquista e neoliberal em uma Espanha que vi o regime ditatorial de Francisco Franco chegar ao fim, o que aconteceria dois anos depois. Luca de Tena então cortou vínculos com sua pátria e partiu para o México, onde se dedicou à escrita. Foi nesse período que escreveu sua obra máxima “As Linhas Tortas de Deus” (1979).
Até hoje considerado um dos livros obrigatórios quando se fala de psicologia, “As Linhas Tortas de Deus” se passa dentro de uma casa para tratamento de saúde mental, à época chamadas de manicômios. No prólogo da obra, o autor fala de sua internação voluntária de 18 dias para entender sobre o que escreveria - ele não queria ser simplório ou abusar da caricatura. Hoje, a visão de Luca de Tena é obsoleta ao considerar que as pessoas com alguma questão de saúde mental seja “uma linha torta de Deus”, “erros da natureza” ou “pobres loucos”, mas o livro continua sendo um bem amarrado thriller agora transformado em filme na Netflix.
Dirigido por Oriol Paulo, da boa série “O Inocente” e do ótimo filme “Contratempo”, ambos da Netflix, “As Linhas Tortas de Deus” é um suspense psicológico cheio de reviravoltas, algumas ótimas, mas outras, nem tanto. O filme tem início com Alice Gould (Bárbara Lennie) sendo internada em uma clínica. Ela diz estar lá infiltrada para investigar um crime que ocorreu no local, mas é admitida com o diagnóstico de mentir compulsoriamente devido à necessidade de sempre ter uma resposta pronta para tudo. No quê acreditar?
“As Linhas Tortas de Deus” é um suspense psicológico que convida o espectador a duvidar de tudo. Alice é muito convincente em seus argumentos, mas é quando o texto nos faz lembrar de seu diagnóstico. O filme tem alguns personagens interessantes, como Urquieta (Pablo Derqui), um interno bem funcional que se aproxima da protagonista e funciona quase como um guia (para o público e para Alice) do funcionamento da instituição. É Urquieta quem explica quem são os outros internos e as questões mentais de cada um - muitos com limitações físicas, alguns com dificuldades intelectuais e muitos que parecem estar no espectro do autismo em uma época em que pouco se falava sobre o tema.
O roteiro escrito por Oriol Paulo e Guillem Clua tem espaço para muitas reviravoltas, principalmente no terceiro ato, quando chega a ser difícil compreender quem está do lado de quem se houver algum lapso de atenção. Com 150 minutos de duração (duas horas e meia), “As Linhas Tortas de Deus” aproveita bem o tempo para criar o mistério e plantar a dúvida. Quando o filme caminha para seu terceiro ato, porém, as reviravoltas se atropelam com frequência e mais do que necessário.
Da mesma forma como acontece nas outras obras de Oriol Paulo, a necessidade de reviravoltas constantes do novo filme da Netflix, literalmente até o último frame, deixa o espectador sempre desconfiado, mas também com um certo incômodo, com a sensação de estar sendo enganado o tempo todo. Em certo ponto, antes do fim, o filme busca a subjetividade, talvez seja como um personagem diz, “a verdade é você quem faz”, mas a sequência final apenas reforça a possível confusão e nos leva de volta ao diagnóstico inicial da protagonista.
Essa dúvida só é possível com a atuação Bárbara Lennie, que interpreta Alice quase como uma musa de Pedro Almodóvar (uma grande influência para a narrativa). A personagem é inteligente, carismática e manipuladora, o que torna é fácil acreditar em suas histórias - o público tem facilidade de se identificar com as possíveis vítimas, e Alice é a única a ter sua versão contada na íntegra.
Tecnicamente, “As Linhas Tortas de Deus” é bem eficiente. Como grande parte do filme se passa dentro da instituição de saúde mental, Oriol Paulo trabalha bem as luzes e os ângulos de câmera para brincar com o estado mental da protagonista, alternando alguns momentos de penumbra, no ponto em que busca o argumento antimanicomial, com outros de luz natural e ambientes abertos.
“As Linhas Tortas de Deus” tem um problema de ritmo, guardando muito para o terceiro ato, mas alguns problemas do filme são oriundos do material original. Oriol Paulo faz mudanças, atualiza alguns conceitos, mas se mantém fiel ao livro de Torcuato Luca de Tena. O resultado é um suspense psicológico convencional, mas que funciona como entretenimento razoável e traz um retrato duro de como o tratamento de questões psiquiátricas avançou nas últimas quatro décadas.
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