Bernard Tapie (1943 – 2021) foi uma figura histórica na França. Empresário que se enveredou pela carreira política, Tapie se especializou em comprar empresas à beira da falência e reerguê-las, foi assim que se tornou dono da Adidas, além de ter ficado famoso por seu envolvimento com equipes esportivas; a La Vie Claire, sua equipe de ciclismo, foi duas vezes vencedoras do Tour de France, e o tradicional time de futebol Olympique de Marseille viveu seu auge com Tapie como presidente, vencendo quatro vezes a liga francesa e ainda uma Champions League, em 1993. No mesmo ano, porém, o clube se viu envolto em um grande esquema de corrupção que deu início ao declínio da figura de Tapie.
“As Mil Vidas de Bernard Tapie”, minissérie da Netflix, reconta a vida da figura histórica com muitas liberdades, mas de maneira eficiente. Ao início de cada episódio, a série lembra o espectador ser “livremente baseada em fatos”, ou seja, ela foi construída ao redor de acontecimentos amplamente registrados, mas sem se preocupar em ser fiel a diálogos, personagens ou nem mesmo à cronologia.
Assim, em sete episódios, “As Mil Vidas de Bernard Tapie” ganha ares épicos e uma narrativa a lá Martin Scorsese em uma jornada de ascensão, deslumbramento, e uma inevitável queda. Quando conhecemos o protagonista, interpretado por Laurent Lafitte, ele é um músico em busca de fama. As coisas não dão muito certo e ele acaba cheio de dívidas tentando emplacar algumas ideias para ganhar dinheiro e sustentar sua família. Os primeiros episódios lidam mais com a pobreza e a ascensão de Tapie, uma maneira de aproximar o público do protagonista antes de torná-lo a figura icônica.
Tapie é construído como um sujeito bonito, charmoso, cheio de lábia, e é fácil acreditar nessa figura e em seus discursos quando já se sabe ao menos parte de sua trajetória. Para os não-iniciados em Tapie, no entanto, “As Mil Vidas de Bernard Tapie” ganha um ar meio fantasioso e lúdico que faz o espectador torcer por aquele sujeito carismático que, entre erros e acertos, se mostra um cara legal. É nessa construção que a minissérie da Netflix tem seu mérito, pois coloca o público ao lado de seu protagonista, mesmo que, na verdade, ele seja um sujeito de práticas às vezes questionáveis.
Como boa parte das obras biográficas que abrangem um recorte temporal longo, “As Mil Vidas de Bernard Tapie” se perde no ritmo sempre acelerado. É interessante como os criadores Olivier Demangel (do ótimo “Atlantique”) e Tristan Séguéla optam por uma narrativa mais seca e pouco didática, mas essa escolha cobra um preço. Os saltos temporais nunca são escancarados, sendo registrados por algum fato como, por exemplo, o aniversário de um ano de uma criança que ainda não havia nascido na cena anterior. Por mais que o recurso funcione, ele também tira o peso de vários fatos importantes – como é costume nas biografias, a série pula de acontecimento em acontecimento, dando a impressão de que seus protagonistas nunca têm um dia de vida normal ou calmaria.
Mesmo cheio de imperfeições, o texto funciona como um exagerado estudo de personagem. A incansável busca de Bernard Tapie por dinheiro, fama e poder é potencializada pelas liberdades históricas do roteiro. Lafitte é ótimo como Tapie e explora as camadas do protagonista como homem de negócios e também no aspecto familiar. A série dá muita importância a Dominique (Joséphine Japy), segunda esposa de Tapie, tornando-a essencial para trazer à narrativa uma personagem feminina que não apenas ficasse à sombra do biografado.
“As Mil Vidas de Bernard Tapie” é bem escrita, bem dirigida, com ótima reconstrução de época e tem boas atuações em uma história interessante, mesmo que fantasiosa. É difícil, porém, diante de tantas muletas e liberdades do texto, separar o real da ficção. As falhas, no entanto, não estragam a experiência do espectador na jornada para conhecer a figura de Tapie como parte da cultura francesa dos últimos 50 anos – ao menos uma versão mais pop do que ele realmente representou.
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