Basta uma rápida procura pelo nome do cineasta holandês Paul Verhoeven no Google para o adjetivo “iconoclasta” aparecer como uma de suas características marcantes. Por isso,me permito aqui um recurso pelo qual não tenho muito afeto, a utilização do significado de alguma palavra para abrir um texto. Segundo o dicionário Houaiss, iconoclasta é “aquele que ataca crenças estabelecidas ou instituições veneradas ou que é contra qualquer tradição”.
Em “Benedetta”, que estreia esta semana no Brasil e em Vitória pode ser visto no Cine Jardins, o cineasta de 83 anos leva esse adjetivo a extremos, mas nem sempre com bons resultados. O filme conta a história de Benedetta Carlini (Virginie Efira), uma jovem devota que passa boa parte de sua vida em um convento na cidade de Pescia, na Toscana, no século 17. O roteiro é livremente baseado no livro “Immodest Acts: The Life of a Lesbian Nun in Renaissance Italy”, de Judith Brown, o que significa que apesar de ser baseado em fatos, o filme tem histórias criadas e alteradas exclusivamente em favor de sua narrativa.
Benedetta realmente acredita falar com Jesus, mas logo percebe que o ambiente no convento não é tão puro assim - inveja, jogo de poder e bens às vezes importam mais do que a religião. Com a protagonista já adulta, o convento recebe uma nova freira, a irmã Bartolomea (Daphne Patakia), e é na relação entre as duas que o filme concentra parte do tempo.
O filme de Verhoeven se sai muito bem quando foca na construção da relação entre as duas mulheres, como se Bartolomea destravasse algo incontrolável em Benedetta, que ganha confiança à com o decorrer da relação e se transforma na grande atuação de Efira. É interessante como as “conversas” com Jesus são retratadas no filme - em sonhos, a protagonista se vê em situações nas quais um herói surge para salvá-la, quase sempre com uma forte carga erótica.
Mas “Benedetta” não é apenas um filme de descobertas sexuais reprimidas de freiras lésbicas, é também uma obra sobre religião. A protagonista não demora a utilizar seu “dom” para subir na hierarquia do convento. Alguns a veem como uma santa, outras desconfiam da veracidade de seus atos e da natureza de sua relação com Bartolomea.
É interessante como Verhoeven desenvolve sua personagem-título. Não fica claro, por exemplo, a origem das chagas de Benedetta ou as quase sempre convenientes manifestações de Deus através de sua voz, seria uma santa ou uma charlatã? Sua ascensão na Igreja é acompanhada pelo aumento da intensidade de sua relação ao ponto da utilização da imagem de Nossa Senhora como objeto sexual - Verhoeven, como dito no início do texto, não tem apreço por imagem e instituições.
“Benedetta” tem ótimas ideias, mas não as desenvolve com clareza. Assim, o filme acaba passeando entre o drama histórico, o suspense religioso e o thriller erótico, sempre com a intenção de chocar. É necessário ressaltar que Paul Verhoeven não é um adepto de sutilezas e procura exatamente o impacto, mas, como aprendeu em seus trabalhos mais hollywoodianos, o espetáculo não pode ser apenas de repulsa generalizada.
O veterano cineasta holandês entrega um filme de crescimento constante e que abraça o caos em seu terceiro ato em busca do incômodo. “Benedetta” contrapõe o sagrado e o profano, a pureza e a ambição, o desejo e o celibato, mas também retrata os opostos como inseparáveis.
Verhoeven busca o exagero narrativo e o choque estético, como a violência de seu “RoboCop”, para apontar o dedo para a cultura de repressão existente na Igreja Católica desde sempre. Por isso, o aparentemente irônico o afago à religião no breve epílogo de “Benedetta” talvez seja mais agressivo do que a própria imagem da Virgem Maria utilizada como dildo, pois mais ofensivo do que cenas de sexo entre duas freiras é expor a hipocrisia de uma das instituições mais poderosas do mundo.
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