Raul Seixas é a “pílula de sabedoria para consumo imediato” para muitos, como diz Jotabê Medeiros, autor de. “Não Diga Que A Canção Está Perdida”, biografia do roqueiro baiano. Mas Raul foi (e é) muito mais. Foi o pai do rock no Brasil, um produtor com talento para transformar a música brega urbana, um músico inovador, firme às suas convicções e que até no fim de carreira (e vida) entregou obras relevantes mesmo quando estava totalmente rendido ao alcoolismo. São essas facetas menos públicas de Raul que Jotabê traz eu sua segunda biografia - a primeira foi de Belchior.
A biografia de Raul foi polêmica desde antes de seu lançamento, quando Jotabê enviou a Paulo Coelho, maior parceiro do baiano, um documento sobre a possibilidade de Raul ter entregue o escritor à ditadura. “Fui atrás e achei o documento, com carimbos da polícia no verso. É irrebatível”, conta o escritor e jornalista com passagem por grandes veículos.
Nesta entrevista, Jotabê fala sobre o livro, a pesquisa, a diferença entre ser escritor e jornalista, e, a polêmica com Paulo Coelho.
Você era um consumidor de Raul Seixas? Entendia sua obra antes?
Era normal, como todo mundo. Eu gostava, mas não tinha um afeto especial como tinha pelo Belchior. Eu pensei: “porra, é difícil pra caralho fazer uma biografia do Raul. O cara viveu no olho do furacão”. Na mesma noite que o editor me sugeriu o livro eu fui encontrar um amigo fotógrafo, o Juvenal Pereira. Ele tinha estado com o Raul em 1988 e tinha fotografado todo o diário dele. Aí ele falou: “se você quiser eu te passo todas essas fotos aí”. Aí eu pensei que aquele seria um puta ponto de partida, tinha alguma coisa me dizendo que ia dar certo.
Esse distanciamento com o artista te ajudou?
Acho que sim. Há uma tendência muito grande, no caso do Raul, de idolatria, de se passar por cima de todas as eventuais complexidades da personalidade dele. Todos os livros já feitos sobre ele têm uma coisa em comum: são muito reverentes. Meu livro não é reverente, embora eu tenha chegado à conclusão de que ele (o Raul) é um dos artistas mais importantes do século 20 (risos). O cara era muito completo. Encontrei um amigo muito fã de Elvis Presley e disse a ele que Raul tinha sido maior que Elvis. Ele queria cortar os pulsos (risos). Bem, Raul fez 312 cancções e Elvis fez quatro ou cinco, ele não era um compositor.
É, como compositor o Raul fez muito mais...
Eu tô falando matematicamente, tá? (risos) Elvis foi o originador, um dos fundadores, mas o Raul era muito mais completo. Ele produziu discos de soul music, de música brega, rock com influência inglesa, blues rock, fez uma ópera, que é “A Sociedade da Grã-Ordem Kavernista”, um disco conceitual com influências até de Frank Zappa e Pink Floyd, algo muito à frente do seu tempo. O Sérgio Sampaio teve muita influência nisso. Ele foi o cara que fez com que o Raul não se conformasse em ser um executivo de gravadora. Ele olhava pro Sérgio e dizia: “cara, eu quero fazer isso aí”. Foi ele que descobriu o Sérgio, uma pessoa superimportante na história do Raul.
Existem mais de 60 livros sobre o Raul, você leu essas obras?
É por aí... Mas não são todos biografias, muitos são só relatos autobiográficos, memorialísticos, às vezes é um ensaio sobre filosofia, misticismo. Eles formam um mosaico muito rico, mas não conversam entre si, não são analisados à luz um do outro. Foi uma faclidade pra mim, porque se essas pessoas não tivessem trabalhado antes seria mais difícil analisar questões da ordem mística dele. Ele era um cara que acreditava em "Deus e outras coisas invisíveis", como diz a música do Belchior ("Pequeno Perfil de Um Cidadão Comum").
Essa pegada mais mística dele já vinha antes do encontro com o Paulo Coelho?
Ele tinha uma curiosidade que era mais cientificista no final das contas. Ele queria ver qual era a aproximação entre Deus e a ciência. O Paulo Coelho o levou mais para as filosofias místicas, para o desconhecido, algo que já estava na personalidade do Raul, mas que depois se tornou metódica. Abriram-se novos caminhos. Tanto que a partir desse encontro com Paulo Coelho todos os discos dele tratam, de alguma forma, do misticismo. Até o último, que tem uma chamada "Nuit", uma deusa do panteão thelêmico, daquela ordem do Aleister Crowley. Até a morte ele foi muito próximo do misticismo.
Quem foi o Raul que você conheceu no processo?
Ele é muito mais complexo, com mais facetas. Muita gente se apega a ele como se ele fosse meio uma pílula de sabedoria para consumo imediato. O Raul meio que fornece isso para um certo tipo de fã, mas é muito mais complexo. Ele foi um cara próximo a um certo ramo da filosofia, com um cancioneiro muito rico. Tem canção que trata até do anarquismo do (Pierre-Joseph) Proudhon. Ao mesmo tempo é muito coerente. Era de se esperar que quando estava mais decadente tivesse feito umas coisas mais “chutadas”, mas não, ele tem grande coerência do início ao fim.
E já totalmente destruído, né?
Tava todo fodido, mas capaz de fazer uma letra como “Metrô Linha 743”. “Os canibais de cabeça...” Como é que é a letra (pensativo)?
“O prato mais caro do melhor banquete é / O que se come cabeça de gente que pensa / E os canibais de cabeça descobrem aqueles que pensam”
Isso! Olha só o nível de elaboração! Como um cara, um alcoólatra, recusado pelo estabilishment, acabado, faz uma canção dessas? É muito coerente com o que ele pensa desde o começo. "Dr. Pacheco", do "Sociedade da Grã-Ordem Kavernista", já é um ataque frontal a um personagem predatório do capitalismo, o cara que só quer saber de dinheiro, sem escrúpulos. Porra, você vê isso em toda a obra dele, ele não se vendeu.
Ele parecia ter um senso de humor único, ser um cara bem peculiar.
Isso é importante porque ele tinha esse sarcasmo que o fazia negar o estrelato. Ele bebia no centro de São Paulo com os “maluco beleza”, chegou a ficar de cueca nas galerias (risos).
Não sei se você já viu esse vídeo dele no Centro de Vitória fingindo ser um sósia dele mesmo. O André Prando postou esse vídeo dia desses...
Ah, o André! Eu sou louco pra fazer um lançamento do livro com o Prando cantando. Ele conhece muito o repertório, estudou mesmo.
Sobre a questão do documento que você mandou para o Paulo Coelho, por que você decidiu enviar esse material pra ele?
Ele já sabia. Na verdade, ele me chamou a atenção para o documento, mas não botava fé que fosse verdadeiro. Aí eu fui atrás do original. Os documentos estão lá no Arquivo Público do Rio de Janeiro, é só ir lá buscar. Nesses documentos estão o depoimento dele (Paulo) à polícia e o da Adalgiza (mulher de Paulo Coelho). No meu livro não cabia tudo isso, não é uma história do Paulo Coelho, é uma história do Raul. O que me interessava, obviamente, é ele ser o maior parceiro do Raul. Conforme eu conversava com o Paulo eu percebi que ele tinha umas travas, alguns problemas que ele não conseguia expressar, até que um dia ele expressou e me mostrou esse documento. Ele falou que nem sabia se o documento era verdadeiro, estava impactado. Aí eu fui atrás e achei o verdadeiro, com todos os carimbos da polícia no verso, é irrebatível, mas não é tão fundamental quanto o Paulo pensava que era, ele tem uma ambiguidade.
Jotabê Medeiros
Jornalista e autor do livro "Raul Seixas - Não diga que a canção está perdida"
"Teve essa questão do Paulo Coelho, que na verdade eu entendi que não dava pra fugir. Se não tivesse nada disso, seria um livro inócuo. Não se pode exigir de um repórter que ele feche os olhos para uma história."
O livro também não é assertivo quanto a isso.
Foi o que eu disse pra ele. Na verdade a responsabilidade é minha, eu sou o autor. Eu só posso afirmar aquilo que tenho como provar. Ele é um puta cara. A circunstância desse negócio... Eu não passei por isso, você é mais novo, então menos ainda. Um ambiente de perseguição, de terror psicológico, o que nós entendemos disso? Mas se eu não tratasse disso também não estaria sendo muito honesto.
Você ficou anos em redação. Como foi essa migração de jornalista pra escritor?
No fim das contas continua sendo uma reportagem, mas uma que você tem tempo pra fazer, que você consegue esgotar o tema. Você pode se dar ao trabalho de ir atrás de fontes desprezadas. Por exemplo, um dos produtores do “Sociedade da Grã-Ordem Kavernista”, que vive lá em Tiradentes, o Ian Guest, eu fui atrás dele e passei um dia na casa dele. Ele ficou tocando piano, falando do Raul... É um cara esquecido, mas que estava lá. O jornalismo diário faz com que a gente escamoteie um pouco esses personagens.
O livro foi feito até rápido para uma biografia. Foram dois anos, né?
Eu até poderia ir além, mas acho que tá tudo ali, não ficou nada de fora. Quando ele fica pronto ele fica pronto. Outra coisa é que o texto, pra mim, é absolutamente satisfatório, com um equilíbrio que me dá a sensação de missão cumprida. Analisei as questões meio sociológicas da inserção do Raul no coração da sociedade brasileira, consegui enxergar com clareza o impacto e a importância dos discos... Estou muito satisfeito com o livro. A ideia é que fosse mais amplo, que não ficasse só no universo do raulseixismo para que as pessoas pudessem ler como a história de um grande personagem da História brasileira.
Biografia sempre dá umas merdas. Teve algum problema com a família do Raul?
Não... Até agora não (risos). Teve essa questão do Paulo Coelho, que na verdade eu entendi que não dava pra fugir. Se não tivesse nada disso, seria um livro inócuo. Não se pode exigir de um repórter que ele feche os olhos para uma história.
Fica a impressão de que essa é a única história, mas o livro tem muitas histórias...
Tem! Até o final, a questão da morte dele. Até o pós-morte, com a encomenda da alma (risos), uma coisa que pode até chocar as pessoas, mas é pura verdade.
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