Crítico de cinema e apaixonado por cultura pop, Rafael Braz é Jornalista de A Gazeta desde 2008. Além disso é colunista de cultura, comentarista da Rádio CBN Vitória e comanda semanalmente o quadro Em Cartaz

"Blonde": filme da Netflix sobre Marilyn Monroe se perde pelo caminho

Apesar da atuação excelente de Ana de Armas e de algumas boas escolhas, "Blonde", da Netflix, acaba como um filme que Norma Jeane, a Marilyn Monroe, não gostaria de ver

Vitória
Publicado em 28/09/2022 às 23h32
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Filme "Blonde", da Netflix, traz biografia ficcionalizada de Marilyn Monroe. Crédito: Netflix/Divulgação

Em certa cena de “Blonde”, Marilyn Monroe está sentada no cinema durante a estreia de “Os Homens Preferem as Loiras”. A câmera, fechada no rosto de Ana de Armas e em sua expressão de angústia, começa a se afastar para mostrar um cinema lotado de gente rindo e se divertindo com o filme; todos se divertem, menos Norma Jeane, a atriz conhecida como Marilyn Monroe, uma mulher infeliz com a personagem que lhe foi imposta não no filme, mas na vida.

Dirigido por Andrew Dominik (dos ótimos "O Homem da Máfia" e "O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford"), um cineasta de forte pegada autoral, “Blonde”, lançado pela Netflix, é filmado como um pesadelo de Norma Jeane. Dominik adapta o romance homônimo de Joyce Carol Oates para as telas, uma obra que mistura fatos e ficção para livremente recriar a história de vida de um dos maiores ícones da cultura pop de todos os tempos, uma mulher que ironicamente também é uma das mais incompreendidas personagens da História da Sétima Arte.

Conhecemos Norma Jeane ainda criança, interpretada por Lily Fisher, no dia de seu aniversário. Como presente, sua mãe, Gladys (Julianne Nicholson), lhe mostra uma foto do homem que seria seu pai, um figurão da indústria de cinema que a abandonou após a gravidez. Gladys “culpa” Norma pelo abandono do então namorado e não demora para o texto nos mostrar que a saúde mental dela não é das melhores.

Após uma passagem de tempo, encontramos a protagonista adulta e já entrando no mundo do cinema, um mercado totalmente dominado por homens. Acompanhamos a transformação de Norma em Marilyn e seus primeiros “testes”. “Blonde” sobre como Marilyn Monroe foi uma personagem criada à revelia de Norma Jeane e da dor que ela sentia, mas é também um filme sobre como Norma foi transformada em uma boneca, um instrumento cobrado para ser um símbolo sexual, uma mulher provocante.

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Filme "Blonde", da Netflix, traz biografia ficcionalizada de Marilyn Monroe. Crédito: Netflix/Divulgação

O filme é também sobre misoginia e a exploração dos corpos femininos. Ninguém se importava com as opiniões da atriz que, quando cita Dostoévski durante um teste, ouve “Então você leu Dostoiévski, querida? Tá bom…”; ou quando tem uma crise de burnout, a perguntam se está “naqueles dias”. A misoginia passa pela indústria, mas encontra ecos em todos os homens do filme, como os maridos e namorados que a idolatravam como símbolo, mas também a infantilizavam como mulher.

Sem citar nomes, o filme mostra os relacionamentos de Norma Jeane com um ex-atleta que seria Joe DiMaggio (Bobby Cannavale), com um autor (Adrien Brody) que seria Arthur Miller e com um presidente (Caspar Phillipson), óbvia referência aos boatos da relação de Marilyn com o então presidente John Kennedy. “Por que Marilyn faz essas coisas? Por que ela me trouxe até aqui? Será que estou em um filme?”, questiona Norma enquanto é forçada a fazer sexo oral em um homem.

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Filme "Blonde", da Netflix, traz biografia ficcionalizada de Marilyn Monroe. Crédito: Netflix/Divulgação

“Blonde” constrói uma protagonista ingênua, no limite da sanidade e sempre buscando uma figura paterna, um fio que, de certa forma, conduz o filme. São raros os momentos em que ela diz não a algum homem que surge em tela, mesmo tendo ciência de estar sendo tratada como um “pedaço de carne”, como diz ao ser carregada para encontrar o presidente.

O filme tem no sexo um personagem importante. Quase toda nudez de Ana de Armas em cena busca mostrar a fragilidade de Norma/Marilyn e, na maioria das vezes, não é tão erótica. As cenas com as violências sofridas por ela são realizadas com a câmera fechada em seus olhos, em sua dor. Em contrapartida, quando ela se entrega em um relacionamento teoricamente saudável, Andrew Dominik filma com leveza, faz questão de mostrar o prazer e a felicidade no rosto de Ana de Armas em cenas que mostram a libertação de Norma Jeane em relação a seu corpo e o controle que ela pode ter sobre ele.

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Filme "Blonde", da Netflix, traz biografia ficcionalizada de Marilyn Monroe. Crédito: Netflix/Divulgação

Tecnicamente, “Blonde” é… confuso. As proporções de tela mudam o tempo todo, com cenas em 16:9, outras em 4:3, algumas até em formatos diferentes. Da mesma forma, algumas sequências são em cores, outras em preto e branco, com filtros diferentes… Inicialmente até tentamos entender a utilização de cada um deles, mas logo se torna impossível.

Durante as quase três horas de duração, “Blonde” se torna uma bagunça estética que tenta reproduzir momentos icônicos da carreira de Marilyn Monroe para que o até o espectador que pouco conhece da história da atriz capte a referência. É interessante como Dominik e o diretor de fotografia Chayse Irvin mostram imagens tão famosas por outros ângulos, quase como se estivéssemos acompanhando a História pelos bastidores dela.

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Filme "Blonde", da Netflix, traz biografia ficcionalizada de Marilyn Monroe. Crédito: Netflix/Divulgação

“Blonde” tem linha narrativa não-convencional e, como toda biografia (mesmo uma falsa), se limita a criar um ícone. É duro acompanhar a derrocada de Norma Jeane em momentos de brilho de Marilyn, mas a escolha dá a impressão de nunca conhecermos de fato Norma mesmo que o texto se esforce para isso. O roteiro também faz escolhas questionáveis na maneira como trata gestações da atriz - algumas cenas e diálogos da atriz durante a gravidez são constrangedores e difíceis de serem justificadas.

“Blonde” busca o incômodo e o espectador encontra isso. Em alguns momentos, o filme de Andrew Dominik é poderoso, comandado por uma Ana de Armas o tempo todo em tela e em atuação que diminui o cansaço provocado pela longa duração. Em outros, porém, oferece pouco ao público não disposto a comprar a ideia da biografia falsa e a narrativa não convencional, intencionalmente repetitiva, e de aspecto quase onírico.

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Filme "Blonde", da Netflix, traz biografia ficcionalizada de Marilyn Monroe. Crédito: Netflix/Divulgação

O filme de Andrew Dominik depende muito da vontade do espectador. Há boas ideias, uma trilha sonora incrível de Nick Cave e Warren Ellis, e uma atuação que faz valer o tempo gasto. Ana de Armas cria uma torturada versão ficcionalizada de Marilyn Monroe que repete os trejeitos de fala da atriz, mas que tem um sotaque próprio, provavelmente para reforçar estarmos vendo uma outra versão da lendária atriz.

Mesmo sendo uma versão ficcionalizada conduzida por eventos reais, “Blonde” ignora muitos feitos importantes da atriz que, por exemplo, teve papel importante na carreira de Ella Fitzgerald em uma época em que cantoras negras não tinham espaço. O filme ignora também Norma como a mulher que criou sua própria agência para negociar contratos e não mais ficar na mão dos estúdios, ou seja há mais de Marilyn idealizada do que de Norma. Ao fim, o filme mostra a Marilyn Monroe que talvez Norma Jeane não gostasse de ver, o símbolo sexual jogado de um lado ao outro, a mulher incapaz de demonstrar suas vontades e reduzida ao sexo.

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