Em seu primeiro longa-metragem, “Os Famosos e os Duendes da Morte” (2009), o diretor Esmir Filho dialogava com a geração que foi adolescente no final dos anos 1990 e início dos anos 2000. Assistíamos ao início de uma era ultraconectada e de suas histórias contadas por registros em redes sociais. Situado em uma pequena cidade no interior do Rio Grande do Sul, o filme mostra a internet como saída, válvula de escape para uma geração que se rotulava incompreendida.
Em “Boca a Boca”, série lançada pela Netflix, Esmir volta ao universo do filme de 2009, mas o atualiza para as novas tecnologias e novas angústias sociais - e é curioso pensar que a geração retratada no filme de estreia do diretor talvez considere a série exagerada, se identificando mais com os adultos do que com seus comportamentos jovens de outrora.
A série é situada na pequena cidade fictícia propriamente chamada de Progresso, onde tudo gira em torno da agropecuária. Enquanto adultos demonstram apatia e conformismo, os jovens querem ir além das regras sociais impostas pela escola em que praticamente todos estudam e pela família opressora.
Após uma festa fora dos limites da cidade, Bel (Luana Nastas) acorda com uma mancha na boca e lesões “neon” pelo corpo. Logo outros jovens começam a aparecer com os mesmos sintomas. Em uma investigação nem tão complexa, Fran (Iza Moreira), Alex (Caio Horowicz) e Chico (Michel Joelsas, o menininho de “O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias”) chegam à conclusão que a doença se espalha pelo beijo, e como a festa foi uma pegação geral, começam a mapear quem Bel poderia ter beijado.
“Boca a Boca” constrói a narrativa de um suspense provocador sustentado pelo conflito geracional. Entre os jovens, as festas, as transgressões e tudo mais o que acontece entre eles é normal. O roteiro até mostra, na maior parte do tempo, uma conexão com questões atuais e na maneira como diferenças devem ser tratadas. Já para os adultos, tudo é um absurdo, falta de religião e de regras. Além disso, a doença representa um risco financeiro - quem, afinal, vai comprar carne de uma cidade doente?
Alternando momentos entre a sobriedade e o ar bucólico de uma cidade no interior de Goiás e o excesso de informações de uma festa rave neon, a série é esteticamente impecável - não surpreenderia, inclusive, se a estética da doença e das festas tiver sido pensada antes mesmo do resto do roteiro.
“Boca a Boca” também é excelente ao tratar de tecnologias, utilizando telas de telefones muitas vezes como única fonte de imagem em algumas sequências. Esmir Filho, que dirige quatro dos seis episódios, entende o excesso de informação e as diferentes narrativas como parte da vivência adolescente atual. A maior parte dos jovens de Progresso compartilha uma existência fantasiosa nas redes, um faz de contas que importa mais do que aquilo que acontece em suas realidades. Se antes Esmir tratava a internet como uma válvula de escapa, ela agora é um beco sem saída.
Nesse cenário, Chico, recém-chegado à cidade, tem comportamento diferente do dos outros jovens, é uma cabeça progressista em uma comunidade conservadora, e é interessante notar como isso causa estranheza em alguns de seus pares. Chico não tem vergonha de ser quem é e fazer o que quer. “Boca a Boca” usa a religião na cidade como um sinal de conservadorismo retrógrado, mas, na verdade, ela funciona mais como um sinal da hipocrisia e da apatia dos adultos, que apenas representam seus papeis sociais.
A série aproveita o clima de suspense para criar uma história sobre dilemas adolescentes, mas também aborda várias questões como homofobia, classismo, racismo e luta de classes. Com uma estética atrativa e uma trama envolvente, a série discute doenças sociais causadas pela supressão de desejos e vontades.
Com boas atuações tanto do elenco jovem quanto dos adultos - Grace Passô, Bianca Byington, Denise Fraga, Bruno Gracia e Thomas Aquino -, “Boca a Boca” é uma ótima surpresa. Apesar de alguns deslizes, a série funciona do início ao fim a não ser por algumas obviedades que parecem só surpreender os personagens. Fica a ressalva, porém, sobre o desnecessário gancho para uma nova temporada; “Boca a Boca” funciona pela quebra da normalidade, pelo impacto e pela mensagem rápida e urgente que pode não ter a mesma força em uma nova leva de episódios. As escolhas finais do roteiro, um tanto equivocadas, já diminuem a urgência da trama, que deve ser ainda mais dissolvida em uma segunda temporada.
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