Crítico de cinema e apaixonado por cultura pop, Rafael Braz é Jornalista de A Gazeta desde 2008. Além disso é colunista de cultura, comentarista da Rádio CBN Vitória e comanda semanalmente o quadro Em Cartaz

"Bom Dia, Verônica": 2ª temporada é uma decepção gigantesca

Série brasileira da Netflix volta em segunda temporada ainda com discurso forte, mas com execução atropelada e roteiro que subestima a inteligência do espectador

Vitória
Publicado em 02/08/2022 às 12h46
Segunda temporada da série
Segunda temporada da série "Bom Dia, Verônica", da Netflix. Crédito: Netflix/Divulgação

Lançada em outubro de 2020 pela Netflix, “Bom Dia, Verônica” era uma série urgente que, ao adaptar para as telas o livro homônimo de Ilana Casoy e Raphael Montes em um thriller tenso e cru. A série e o livro tratavam o abuso doméstico e a violência contra as mulheres escancarando a realidade e praticamente forçando o espectador a ver o que poderia estar acontecendo dentro da casa de seus vizinhos sem que ninguém percebesse. A relação entre o policial-modelo Brandão (Eduardo Moscóvis) e sua esposa, Janete (Camila Morgado), era incômoda justamente por sabermos que refletia a realidade de vários lares brasileiros.

Quase dois anos depois, a segunda temporada chega nesta quarta (3) à plataforma de streaming ainda com Casoy e Montes como roteiristas, mas com um roteiro que claramente carece de estofo e de uma execução mais cuidadosa necessária, por exemplo, a um livro. Encontramos Verônica (Tainá Muller) alguns meses depois, vivendo com outro nome após forjar sua morte ao final da temporada anterior e empenhada em desmantelar a organização criminosa que dominou o alto escalão da polícia e voltar para sua família.

A temporada tem início com uma tocaia em que Verônica percebe uma figura misteriosa dando ordens. A série inicialmente situa o espectador no mundo da protagonista entre uma temporada e outra, mas não demora para o caminho dela se cruzar ao de Mathias (Reynaldo Gianecchini), um missionário que oferece “a cura” a jovens bonitas de sua igreja. Bonito, charmoso, com uma retórica simples, mas poderosa, Mathias é uma mistura de João de Deus e diversos líderes religiosos que usam a fé e o desespero das pessoas para interesse próprio.

O missionário tem uma família perfeita com a esposa, Gisele (Camila Márdila), e a filha, Angela (Klara Castanho), mas algumas coisas bem sinistras acontecem dentro da mansão em que ele leva mulheres para serem curadas. Caberá a Verônica, é óbvio, desmascarar o missionário (que o texto faz questão de nunca chamar de pastor), salvar as mulheres abusadas por ele e mergulhar ainda mais nas entranhas da organização, mas sua família e seus amigos também estarão em risco.

Segunda temporada da série
Segunda temporada da série "Bom Dia, Verônica", da Netflix. Crédito: Netflix/Divulgação

Com seis episódios em sua segunda temporada (a primeira teve oito), “Bom Dia, Verônica” perde força narrativa e se atropela com frequência. Tudo é muito simples e repentino, tirando o impacto das viradas e o peso de algumas revelações. A diminuição de episódios também atrapalha o ritmo da série, com cenas curtas e algumas sequências importantes que parecem trucidadas pela edição - assim, algumas perdem o sentido e outras parecem completamente deslocadas, como o final do segundo episódio, por exemplo.

Quando se concentra na protagonista, a série se torna muito ruim e tem passagens constrangedoras; Verônica entra e sai de qualquer lugar sem ser vista (inclusive de praticamente qualquer cômodo de qualquer lugar) e sem demonstrar grande preocupação com a possibilidade, ela também consegue ouvir, à distância e com detalhes, a conversa entre duas pessoas em uma boate barulhenta. A protagonista também é a pior pessoa do mundo para sumir do mapa, repetindo rotinas de sua “outra vida” e utilizando, por exemplo, uma moto devidamente registrada em seu novo endereço para a já citada tocaia.

Segunda temporada da série
Segunda temporada da série "Bom Dia, Verônica", da Netflix. Crédito: Netflix/Divulgação

O texto é preguiçoso ao buscar soluções para movimentar a série, ignorando o bom senso, e acaba se sustentando sobre essas muletas que subestimam a inteligência do espectador; as câmeras de vigilância só servem quando o roteiro precisa delas, da mesma forma, os personagens mudam de comportamento repentinamente conforme a necessidade do roteiro.

A série se torna levemente mais interessante quando investe no núcleo de Mathias. Gianechinni é charmoso e inteligente o suficiente para conferir um ar canastrão, mas sempre perigoso ao personagem. O relacionamento do antagonista com a filha ganha profundidade no decorrer da série e dá bom espaço para Klara Castanho. Angela é uma menina criada em uma bolha, sem nenhuma noção do mundo, mas aos poucos ela percebe haver algo errado com os pais.

Segunda temporada da série
Segunda temporada da série "Bom Dia, Verônica", da Netflix. Crédito: Netflix/Divulgação

É Camila Márdila, porém, quem tem a personagem mais complexa da segunda temporada de “Bom Dia, Verônica” e também o melhor arco, ainda que curto. Gisele é, desde o início, uma mulher sofrida, incomodada com o modus operandi do marido e preocupada com a filha, mas é também parte de tudo aquilo. O que seria ela, afinal, sem a fortuna e a influência de Mathias?

“Bom Dia, Verônica” continua com um discurso forte e relevante, mas, ao ampliar seu escopo e ter como principal antagonista uma grande organização sem rosto, parece levar sua trama para a ficção e distanciá-las daquela proximidade com o real que tornava o livro e o texto da série tão poderosos. Ainda assim, há boas discussões sobre relações abusivas por figuras de poder, abuso sexual, a manipulação pela fé e o gaslighting (Mathias chama a filha de louca para descredibilizá-la e ameaça interná-la o tempo todo). Os roteiristas sabem sobre o assunto e fazem questão de levar essa informação ao público, mesmo que não o façam da melhor forma.

A segunda temporada de “Bom Dia, Verônica” já se conecta a uma possível terceira parte, mas passa longe da qualidade da primeira, com a qual tenta desesperadamente e de maneira equivocada se conectar. Com edição atropelada, tentando encaixar muitas ideias em pouco espaço, e um roteiro preguiçoso, a série perde tensão ao resolver todos seus conflitos imediatamente - em um instante Verônica busca pelo filho que ninguém sabe onde está, na cena seguinte aparece milagrosamente para salvá-lo. Não há construção de tensão e expectativa, e não há thriller que sobreviva sem isso, independente da força de sua mensagem.

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