Lançada em outubro de 2020 pela Netflix, “Bom Dia, Verônica” era uma série urgente que, ao adaptar para as telas o livro homônimo de Ilana Casoy e Raphael Montes em um thriller tenso e cru. A série e o livro tratavam o abuso doméstico e a violência contra as mulheres escancarando a realidade e praticamente forçando o espectador a ver o que poderia estar acontecendo dentro da casa de seus vizinhos sem que ninguém percebesse. A relação entre o policial-modelo Brandão (Eduardo Moscóvis) e sua esposa, Janete (Camila Morgado), era incômoda justamente por sabermos que refletia a realidade de vários lares brasileiros.
Quase dois anos depois, a segunda temporada chega nesta quarta (3) à plataforma de streaming ainda com Casoy e Montes como roteiristas, mas com um roteiro que claramente carece de estofo e de uma execução mais cuidadosa necessária, por exemplo, a um livro. Encontramos Verônica (Tainá Muller) alguns meses depois, vivendo com outro nome após forjar sua morte ao final da temporada anterior e empenhada em desmantelar a organização criminosa que dominou o alto escalão da polícia e voltar para sua família.
A temporada tem início com uma tocaia em que Verônica percebe uma figura misteriosa dando ordens. A série inicialmente situa o espectador no mundo da protagonista entre uma temporada e outra, mas não demora para o caminho dela se cruzar ao de Mathias (Reynaldo Gianecchini), um missionário que oferece “a cura” a jovens bonitas de sua igreja. Bonito, charmoso, com uma retórica simples, mas poderosa, Mathias é uma mistura de João de Deus e diversos líderes religiosos que usam a fé e o desespero das pessoas para interesse próprio.
O missionário tem uma família perfeita com a esposa, Gisele (Camila Márdila), e a filha, Angela (Klara Castanho), mas algumas coisas bem sinistras acontecem dentro da mansão em que ele leva mulheres para serem curadas. Caberá a Verônica, é óbvio, desmascarar o missionário (que o texto faz questão de nunca chamar de pastor), salvar as mulheres abusadas por ele e mergulhar ainda mais nas entranhas da organização, mas sua família e seus amigos também estarão em risco.
Com seis episódios em sua segunda temporada (a primeira teve oito), “Bom Dia, Verônica” perde força narrativa e se atropela com frequência. Tudo é muito simples e repentino, tirando o impacto das viradas e o peso de algumas revelações. A diminuição de episódios também atrapalha o ritmo da série, com cenas curtas e algumas sequências importantes que parecem trucidadas pela edição - assim, algumas perdem o sentido e outras parecem completamente deslocadas, como o final do segundo episódio, por exemplo.
Quando se concentra na protagonista, a série se torna muito ruim e tem passagens constrangedoras; Verônica entra e sai de qualquer lugar sem ser vista (inclusive de praticamente qualquer cômodo de qualquer lugar) e sem demonstrar grande preocupação com a possibilidade, ela também consegue ouvir, à distância e com detalhes, a conversa entre duas pessoas em uma boate barulhenta. A protagonista também é a pior pessoa do mundo para sumir do mapa, repetindo rotinas de sua “outra vida” e utilizando, por exemplo, uma moto devidamente registrada em seu novo endereço para a já citada tocaia.
O texto é preguiçoso ao buscar soluções para movimentar a série, ignorando o bom senso, e acaba se sustentando sobre essas muletas que subestimam a inteligência do espectador; as câmeras de vigilância só servem quando o roteiro precisa delas, da mesma forma, os personagens mudam de comportamento repentinamente conforme a necessidade do roteiro.
A série se torna levemente mais interessante quando investe no núcleo de Mathias. Gianechinni é charmoso e inteligente o suficiente para conferir um ar canastrão, mas sempre perigoso ao personagem. O relacionamento do antagonista com a filha ganha profundidade no decorrer da série e dá bom espaço para Klara Castanho. Angela é uma menina criada em uma bolha, sem nenhuma noção do mundo, mas aos poucos ela percebe haver algo errado com os pais.
É Camila Márdila, porém, quem tem a personagem mais complexa da segunda temporada de “Bom Dia, Verônica” e também o melhor arco, ainda que curto. Gisele é, desde o início, uma mulher sofrida, incomodada com o modus operandi do marido e preocupada com a filha, mas é também parte de tudo aquilo. O que seria ela, afinal, sem a fortuna e a influência de Mathias?
“Bom Dia, Verônica” continua com um discurso forte e relevante, mas, ao ampliar seu escopo e ter como principal antagonista uma grande organização sem rosto, parece levar sua trama para a ficção e distanciá-las daquela proximidade com o real que tornava o livro e o texto da série tão poderosos. Ainda assim, há boas discussões sobre relações abusivas por figuras de poder, abuso sexual, a manipulação pela fé e o gaslighting (Mathias chama a filha de louca para descredibilizá-la e ameaça interná-la o tempo todo). Os roteiristas sabem sobre o assunto e fazem questão de levar essa informação ao público, mesmo que não o façam da melhor forma.
A segunda temporada de “Bom Dia, Verônica” já se conecta a uma possível terceira parte, mas passa longe da qualidade da primeira, com a qual tenta desesperadamente e de maneira equivocada se conectar. Com edição atropelada, tentando encaixar muitas ideias em pouco espaço, e um roteiro preguiçoso, a série perde tensão ao resolver todos seus conflitos imediatamente - em um instante Verônica busca pelo filho que ninguém sabe onde está, na cena seguinte aparece milagrosamente para salvá-lo. Não há construção de tensão e expectativa, e não há thriller que sobreviva sem isso, independente da força de sua mensagem.
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