Lançada em primeiro de outubro na Netflix, "Bom Dia, Verônica" é um sucesso . A série adapta o thriller policial de Raphael Montes e Ilana Casoy, que originalmente o lançaram sob a alcunha de Andrea Killmore. Levada para as telas, a narrativa ganhou ainda mais força com o apoio da imagem e, principalmente, pelas atuações do trio de protagonistas formado por Tainá Müller, Camila Morgado e Du Moscóvis.
Na crítica que fiz da série à época do lançamento escrevi "'Bom Dia, Verônica' é um grito contra a violência contra a mulher e o abuso doméstico, é uma série que não romantiza as relações abusivas, pelo contrário, as expõe com o máximo de realidade para que o público entenda que o que vê em tela é ficção, mas o que acontece na casa do seu vizinho talvez não seja". Não é à toa que a série tem ganhado tração nas redes sociais, pois seu discurso é atual e urgente.
Em entrevista virtual, Tainá, Camila e Du foram unânimes em destacar que não era fácil encarnar aqueles personagens por 12 horas em um set e voltar para casa depois. "É um tema que sempre me tocou muito, então não tive como não me envolver no assunto, sabe? Ele me diz respeito, diz respeito a todas as mulheres", destacou Tainá.
Para Camila, talvez o maior destaque da série, o mais importante era respeitar a posição da Janete, uma vítima que merecia ser tratada com verossimilhança. "Eu tinha um comprometimento que fosse bem retratada e verossímil. Eu comecei a perceber os estágios dela". A relação de sua personagem, Janete, com o marido, Brandão (Du Moscóvis), é o ponto alto da narrativa, é o que dá o tom de ameaça constante: "O que interessava muito pra gente na construção de uma série como essa, nesse caso, muito pela sensibilidade do José Henrique e também pela construção dramatúrgica da série do Raphael Montes e da Ilana Casoy, os personagens se comunicam e se finalizam um pelo outro", ponderou.
Confira abaixo a entrevista na íntegra em que Tainá, Camila e Du falam sobre a força narrativa da série, sua importância no momento atual da sociedade e até sobre um ataque de formigas atraídas pela doçura do sangue falso em uma cena importantíssima da série.
Tainá, a Verônica é uma mulher muito destemida, forte, e tem sempre que conciliar carreira e vida pessoal. Você acha que isso é uma luta com todas as mulheres, você se identifica com esse perfil da Verônica?
Tainá Müller: Totalmente, 100%. Esse ponto da Verônica eu tanto me identifico com ela quanto como quando estava gravando a série eu estava nesse momento. Tinha um filho de três anos, então eu fazia todas aquelas cenas, tinha que chegar em casa, dar jantar, botar pra dormir... Aí ele acorda de madrugada e eu acordava junto. No dia seguinte estava no set, tinha que estar com o texto estudado, decorado, pronto pra fazer a Verônica subir no muro, atirar, rolar, dar soco na cara do Du (risos)... Nesse ponto eu me identifico total. É uma questão muito contemporânea da mulher. A gente está nesse lugar de precisar deixar de se cobrar tanto, porque todas as mulheres, principalmente quem é mãe e profissional, estão muito sobrecarregadas neste momento.
A série é forte, com papéis intensos. Foi um desafio muito grande? A Verônica é uma mulher muito forte, o Du vive um vilão daqueles que estão com a gente no dia a dia, e a Camila é uma vítima como tantas outras mulheres são vitimas todos os dias. Como foi interpretar esses personagens sem se envolver com o pessoal de vocês?
Camila Morgado: Eu tive muito respeito por viver a vítima. Eu precisava que essa história fosse contada pelos estágios da vítima. Eu tinha um comprometimento que fosse bem retratada e verossímil. Eu comecei a perceber os estágios dela. Conversei muito com a Ilana (Casoy) e o Zé (José Henrique Fonseca). Eu, o Du e a Tainá falávamos muito sobre isso, sobre os estágios por que a vítima passa. O primeiro momento é sempre uma vergonha, ela sente culpa, se sente responsável, ela não entende que aquilo tem nome, que aquilo que ela sofre tem nome, ela acha que é responsável. Até a vítima começar a entender e ser acolhida como ela é pela Verônica e começar a fazer a passagem de que ela não é responsável, mas sim vítima, leva um tempo. Ela fica muito tempo sendo manipulada pelo agressor, que se acha no poder, julga que a vítima é propriedade dele, o corpo, os pensamentos, o meio social... Ele pensa que tudo faz parte dele. Violência de gênero está pautada no poder, então eu quis fazer essa passagem dela entender que sofre violência doméstica, que é vítima, e que precisamos falar sobre isso, que é violência doméstica.
Tainá: Eu não tinha como não me envolver com o tema porque estamos falando de uma realidade brasileira. Eu sou mulher, entendo meu lugar de mulher branca e o que é ser mulher na sociedade brasileira, mas também me interesso pela interseccionalidade do feminismo, me atento pra como é ser uma mulher negra, uma mulher indígena na sociedade. É um tema que sempre me tocou muito, então não tive como não me envolver no assunto, sabe? Ele me diz respeito, diz respeito a todas as mulheres. A Verônica é uma mulher forte. Eu, como atriz, tive que manter uma vibração muito alta, elevada, ela é pilhada e eu queria passar isso. Ela se atropela, ela não pensa, porque se pensar talvez ela não fizesse tudo o que ela faz. Então nesse atropelo de tentar seguir esse chamado de ajudar as mulheres, ela vai se atropelando. Como atriz, eu sempre me aquecia muito antes de entrar em cena pra manter essa vibração, esse sangue que corre rápido. Sempre senti a Verônica num ritmo diferente do dos outros personagens, ela está sempre acelerada.
O livro tem uma fala da Janete sobre o Brandão que diz muito, é "Quando o Brandão baixa o tom de voz, o perigo aumenta". Não sei se isso está no roteiro, mas as atuações da Camila e do Du dão muito a entender essa relação entre os dois. A troca entre vocês dois é muito forte. Como foi esse trabalho de composição?
Du Moscóvis: No início, no trabalho da aproximação, do pensamento, da construção, interessava fugir da caricatura do personagem. Antes de a gente chegar a avaliar uma psicopatia qualquer, esse cara é um homem, então interessa pra gente discutir em que lugar estão essas relações, onde essas relações estão estabelecidas e de que forma a gente evolui dentro dessas relações. Aonde é que começa a aparecer a vítima e o algoz, como isso se estabelece e como é que se rompe isso. O que interessava muito pra gente na construção de uma série como essa, nesse caso, muito pela sensibilidade do José Henrique e também pela construção dramatúrgica da série do Raphael Montes e da Ilana Casoy, os personagens se comunicam e se finalizam um pelo outro. Eu observo muito a Janete e a Verônica como complementares. A Verônica é tudo aquilo que a mulher como a Janete precisa ser: ela precisa ter uma atitude, romper aquilo, ir atrás e ter voz. Ela tem que sair do lugar de submissão e se sentir amparada pra isso. Como é que a gente estabelece a construção do Brandão com a Janete? Lógico que a Janete vai potencializar o perigo do Brandão. A Camila, como atriz, vai reforçar a minha atuação à medida que ela se sente insegura ou ameaçada por mim, isso é fato. Acho que a gente começou a construir teoricamente, a partir do que a gente pensa, das nossas propostas de texto, e depois quando a gente entre em cena. A gente vai estabelecendo esses limites e esse tom de voz, o lugar desse cara, é muito mais ameaçador, muito mais cruel e covarde quando você percebe que esse cara existe do seu lado, que qualquer ser humano perto de você não precisa necessariamente ser enorme, ogro ou que grite, essa é a caricatura que a gente desconstrói pra criar uma aproximação com o que a gente vive.
Camila: Eu comecei a ver quem era a Janete, essa menina que vem do interior com muita esperança de que o mundo vá ser muito legal com ela. A Ilana dia desses falou que às vezes a mulher faz tudo certinho pra que o final seja bacana, mas às vezes não é. Então ela vem cheia de sonhos, de ter um casamento legal, ela acredita que o Brandão seja um príncipe, até que esse mundo vai desabando. Eu comecei a perceber o que seria essa casa dela, que é muito bem cuidada porque o Brandão exige que assim seja, aquele é o mundo dela. O Brandão começa a manipulá-la de um jeito que ela tem que ficar cada vez mais longe do mundo externo, ela começa a ser uma propriedade, ele a chama de passarinha, é o pássaro que ele cuida dentro de um cativeiro, né? A caixa também representa esse cativeira e até ela abrir a caixa é uma longa jornada. Até ela sair desse processo de manipulação eu comecei a perceber que essas mulheres são silenciosas, companhia da Janete é a solidão, porque ela foi separada desse mundo externo, vive trancada em casa. Ela tem um olhar que já tem um certo estranhamento com o mundo. Eu acredito que a vítima começa um processe de esquecimento de quem ela é, porque a opressão é tamanha que ela vai começando a se distanciar das cosias que ela gosta. Quando a irmã chega, ela ganha um pouco mais de atitude porque a irmã a provoca e a mostra quem ela era. Eu até cheguei a falar com o Raphael (Montes): "eu acho que a Janete tem que fumar, porque o cigarro, pra uma pessoa trancada em cativeiro, é fundamental, é um companheiro". E eu não tô aqui incentivando o fumo (risos), mas isso é real. Eu até tentei trazer uma fisicalidade pra ela, sem julgamento, quando ela fica TV, por exemplo, o corpo fica numa postura que é até um pouco estranha, chega a ser um pouco engraçado quando eu me vi na série depois. São gestos incomuns porque o mundo dela é aquilo, é só aquilo, ela é manipulada diariamente.
Qual a importância de uma produção como "Bom Dia, Verônica" nos dias de hoje?
Tainá: Eu acho que a série tem uma coisa muito especial de ser um thriller muito brasileiro, com questões muito brasileiras. Isso é um mérito da série porque a gente está acostumado aos thrillers americanos, mas eu me incomodo quando a gente tenta imitá-los. A série consegue tratar de assuntos urgentes do Brasil, assuntos que estão nos jornais todos os dias, e faz isso com uma autenticidade nossa, um tempero, e vai assim para o mundo. Hoje tá todo mundo olhando pro Brasil, o que está acontecendo aqui, estamos vivendo uma situação em que o mundo quer saber o que está acontecendo por aqui. "Bom Dia, Verônica" mostra algumas respostas sobre isso, o que eu acho muito importante.
Camila: A gente precisa tocar no assunto, pressionar a sociedade, abrir a reflexão e trazer para o diálogo. É um tema urgente. A gente viu na pandemia o quanto a violência doméstica aumentou e o quanto o nosso machismo é estrutural. As pessoas acham normal tratar as mulheres dessa forma, incluindo aí as mulheres trans. Falo de violência de gênero, no quanto a sociedade normaliza essa questão. Isso tem que ser falado e a série ocupa esse espaço. Fazer isso através da ficção é maravilhoso porque a gente pode falar de um tema com o qual as mulheres podem se identificar. A gente pode nomear essa violência doméstica, que precisa ser denunciado.
Du: Eu tomo essa questão muito pro lado pessoal, pro meu lado pessoal de ator, homem, que vive no polo econômico do país, na zona Sul carioca... Eu me sinto responsável de fazer com que esse tema seja levantado, questionado e debatido. Não estou falando isso de uma forma a partir do meu umbigo, mas a partir de onde me sinto responsável enquanto ator, artista e cidadão, mas esse tema tem que ser falado. Partindo do meu privilégio nato, é fundamental a gente se questionar o nosso comportamental. Eu, como homem, nas minhas relações com as minhas companheiras, de amizade, de amor ou social. A partir de mim, pode ser que apareça uma reflexão.
Camila Morgado
Atriz de "Bom Dia, Verônica"
"A gente precisa tocar no assunto, pressionar a sociedade, abrir a reflexão e trazer para o diálogo. É um tema urgente. A gente viu na pandemia o quanto a violência doméstica aumentou e o quanto o nosso machismo é estrutural. As pessoas acham normal tratar as mulheres dessa forma, incluindo aí as mulheres trans. Falo de violência de gênero, no quanto a sociedade normaliza essa questão. Isso tem que ser falado e a série ocupa esse espaço. Fazer isso através da ficção é maravilhoso porque a gente pode falar de um tema com o qual as mulheres podem se identificar."
Qual foi a cena mais difícil para cada um de vocês?
Tainá: Eu tive várias desafios emocionais, por exemplo quando eu enfrento o Carvana, mas eu me lembrei de uma que é mais um fato curioso. Quando eu tava perseguindo o personagem do Du, o Brandão, no sítio, eu tava com sangue cenográfico na cabeça. Teve um momento que eu me encostei numa árvore e, como o sangue falso é doce, vieram imediatamente umas 50 formigas na cabeça e me picaram ao mesmo tempo (risos). Era um desespero, eu gritava (grita!), a cabeça queimando e umas três pessoas catando formigas na minha cabeça (risos). Quando pergunta de uma cena difícil, eu não tenho como não lembrar dessa (risos), esse momento bastidores.
Camila: A cena em que a Janete conta sua história para a Verônica, eu e Tainá já falamos a beça sobre essa cena, sobre o quanto ela é importante até no processo educativo que essa série vai trilhar. A vítima tem que entender que ela é vítima, ela não tem culpa de nada, não é a responsável. Acho essa cena importante e foi difícil de fazer. A gente começou a ensaiar por essa cena, inclusive, porque é uma cena muito reveladora porque a Janete é acolhida. Fazer a Janete foi muito difícil, muito profundo. Ela vive sobre uma pressão constante. Ela e Brandão estão sempre sob uma tensão, como um filme de terror. A maioria das cenas era complicada, eram cenas difíceis de serem realizadas. A gente estava num set de gravação, com vários fatores, muita gente envolvida, e a gente tem que ter toda a carga emocional para realizar as cenas, então o trabalho por si só já era difícil. Não que eu não prestasse atenção nisso antes, sempre prestei muita atenção nesse machismo e nesse racismo estrutural, porque a gente só vai acabar com uma quando acabar com a outra, mas viver o papel da vítima com essa amplitude é um processo difícil a ponto de as mulheres do set virem falar comigo por já terem sofrido algum tipo de violência. Acabei representando ali várias mulheres, porque a gente vive isso diariamente. Fisicamente é um lugar ruim de se estar, como vítima, mas ao mesmo tempo, como atriz, é muito bom poder estar representando isso pra que as mulheres se identifiquem.
Du: Eu assisti à série há pouco tempo (a entrevista foi realizada na semana da estreia) e eu fiquei muito impactado com essa cena da Camila, eu não tinha visto, não tinha participado. Eu assisti a muitas cenas com a minha filha de 13 anos, que está comigo aqui, e foi muito difícil assistir àquela cena... Camila, tô aproveitando pra te dar um beijo de parabéns, tá? É muito linda a cena porque ela sai de um lugar muito gutural, a Janete não sabe nem como falar direito, mas ela vai escapando. Eu fico imaginando quantas mulheres, se tivessem a possibilidade de falar, se não seria daquela forma, ao que a gente assistiria no depoimento dessas pessoas, dar voz a elas. Não sei nem mais o que estou falando...
Tainá: A cena mais difícil, Du (risos)...
Du: Ah sim! Todas as cenas! Às vezes é mais fácil uma cena em que você se joga, bate, briga, chora, quebra tudo pra botar tudo pra fora. Pra mim, parecia ser mais difícil fazer toda a trilha e sustentar tudo aquilo que você perguntou antes, da relação do Janete e do Brandão, a costura... Como você sustenta o universo do casal, daquela casa, naquele tom comedido, estudado, estrategicamente cruel e covarde? Às vezes dá vontade de subir o tom de voz, mas eu tinha que segurar. Ia chegar a hora de eu extravasar e o bom de fazer uma obra fechada como essa é isso: você consegue alinhavar e costurar as cenas em que você quer extravasar. Acho que a manutenção desse pulso desse casal era difícil de manter por 12 horas por dia sem deixar a bola cair, sem ficar o ritmo baixar, ficar pulsante, ameaçador... É cruel a gente pensar que existem pessoas que vivem a vida dessa forma, né? Que quando o marido tá entrando em casa (imita um calafrio)... já vem pra outro lugar. Aquele claustro, aquela passarinha, aquela mulher infelizmente tem muita mulher que vive daquela forma.
Tainá, como foi a preparação para viver a Verônica, que parece ser bem diferente de você?
Tainá: A jornada da Verônica é quase o nascimento do Batman nessa temporada (risos), é como nasce essa anti-heroína, o que leva essa mulher a chegar àquele ponto. Eu trabalhei muito a energia dentro de mim. Sou gaúcha faca na bota (risos) então trouxe toda essa raiz da minha criação dessa mulher forte que teve que enfrentar muita coisa. Com certeza o José Henrique Fonseca me ajudou nesse processo. Ele trouxe essa força, essa pilha, pra Verônica. Além de ela ter uma força, ela é pilhada, acelerada. Eu me aquecia muito antes de entrar em cena, eu queria que meu sangue estivesse sempre fervendo e que a Verônica estivesse sempre a ponto de bala. Isso me ajudou muito, assim como a preparação física. Eu tava saindo da Marilyn Monroe, que era um trabalho totalmente diferente, saindo da languidez, e quando eu cheguei pra fazer a série eu estava assim. Tive que desconstruir tudo isso para construir essa mulher que é mais reta, mais viril, mais proativa, ela vai, não pensa, ela age. Mas ela também é mãe, então tinha que trazer outra energia. Ela tem uma vida familiar importante, um universo interno muito complexo e muito rico que ela carrega dessa tragédia da família dela. Eu quis fazer esse contraste o tempo todo porque ela também passa por um processo de adoecimento ao longo da série, as coisas não saem tão bem pra ela. Ela adoece diante desse sentimento de impotência desse sistema tão opressor.
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