Quando a ideia de “Boneca Russa” foi vendida à Netflix, a proposta era realizar uma série com três temporadas. Ainda assim, a primeira temporada trazia um arco fechado explorando a fórmula do dia que se repete eternamente no aniversário de 36 anos de Nadia (Natasha Lyonne), que sempre morria ao final do dia e retornava ao começo. Mesmo com uma pegada cômica e episódios curtos, a série despertava reflexões; à época, escrevi: “É espantoso que uma série de tiro curto como “Boneca Russa” gere tanta reflexão sobre a necessidade de se olhar para as escolhas feitas e a obrigação de lidar com as consequências”.
A segunda temporada, que chega nesta quarta (20) à Netflix, surpreende por motivos diferentes. Ao invés de reciclar a fórmula que já deu certo na temporada anterior, com outro dia sendo repetido, “Boneca Russa” decide brincar com outro gênero estabelecido há muito tempo na indústria, a viagem no tempo.
Quatro anos se passaram desde os acontecimentos da primeira temporada e Nadia, às vésperas de completar 40 anos, vive em alerta com receio de que a situação se repita, mas não torna isso o foco de sua vida. Certo dia, porém, a fantasia volta à sua vida - ao pegar um metrô, Nadia descobre uma espécie de “buraco da minhoca” que permite que ela viaje entre 2022 e 1982 quando bem entender e com regras que só vão ficar bem definidas ao final da temporada.
Um dos grandes atrativos de “Boneca Russa” é Nadia, que sustenta todos os absurdos que acontecem com ela com uma mistura de incredulidade e um ar de “ah que ótimo, mais um dia esquisito na minha vida”. É Natasha Lyonne que garante a comicidade do texto mesmo quando ele parte para o drama que, de fato, é pilar da série.
É muito interessante como o roteiro não pensa em sua heroína como uma pessoa necessariamente “boa” - Nadia é egoísta, narcisista, curte drogas e não vê problemas em mudar o passado para se dar bem no futuro. Essas escolhas distanciam a protagonista de um pedestal de moralidade e a aproximam do público que obviamente pensa “o que eu faria se pudesse voltar ao passado?”.
Estruturalmente, a segunda temporada de “Boneca Russa” é similar à primeira, apesar da nova dinâmica fantasiosa. Os primeiros episódios são mais convencionais, funcionando da maneira como acreditamos que histórias de viagem no tempo devem funcionar e nos reambientando àquele universo. A partir do quinto episódio (de sete), as coisas param de acontecer como se espera - e é quando a série fica estranha que ela convida o espectador à reflexão, deixando a comicidade de lado e mostrando a que veio.
Enquanto a primeira temporada lidava com o peso das escolhas e a dor causada por elas, a segunda lida com a inevitável e cruel visita do tempo. Ao chegar aos 40 anos, Nadia sente o peso da idade, principalmente ao lidar com a morte de pessoas próximas e algumas perdas iminentes, e o que ela fez até ali?
A necessidade de um legado, de ser lembrado, é um dos pontos que movimenta “Boneca Russa” em seus novos episódios. Quando Nadia se reconecta com as dores e as angústias de sua mãe e sua avó, ela se entende e consegue olhar para as próprias escolhas. O fato de ser uma série pensada, escrita e dirigida por mulheres ajuda na compreensão das dores da protagonista e das mulheres que a cercam - os homens, mesmo os que têm certo destaque, têm pouquíssima importância nas vidas dessas mulheres.
É interessante, também, como os novos episódios acabam se reconectando aos da primeira temporada após a impressão de que seguiriam de forma independente. Inicialmente, a nova história passa a sensação de estarmos diante uma antologia, como se fossemos acompanhar uma nova aventura fantástica de Nadia, mas tudo se conecta. Como na vida, tudo deixa marcas que influenciam na construção da identidade e na maneira como lidamos com o mundo, e as cicatrizes deixadas em Nadia após seu aniversário de 36 anos são grandes mesmo que ela tente escondê-las sob uma postura durona e pouco sensível.
“Boneca Russa” é muito feliz ao brincar com outra fórmula de sucesso, mantendo o conforto com uma dinâmica já conhecida do público, mas tornando-a sua e chegando ao ápice em sequências que vão do caos total à angustiante calmaria. Com essa mistura, a série cria sua identidade e se destaca como uma obra única, com sequências memoráveis reforçadas pela ótima e marcante trilha sonora (a cena com “Shine On You Crazy Diamond”, do Pink Floyd, é ótima) pensada justamente para transformar a série em um produto de apelo pop apesar de toda sua estranheza.
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