Crítico de cinema e apaixonado por cultura pop, Rafael Braz é Jornalista de A Gazeta desde 2008. Além disso é colunista de cultura, comentarista da Rádio CBN Vitória e comanda semanalmente o quadro Em Cartaz

Bonito e melancólico, "Os Primeiros Soldados" chega aos cinemas

Após rodar festivais Brasil afora, "Os Primeiros Soldados", de Rodrigo de Oliveira, traz histórias do início da epidemia de Aids no Espírito Santo, nos anos 1980

Vitória
Publicado em 07/07/2022 às 16h12
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Filme "Os Primeiros Soldados", de Rodrigo de Oliveira. Crédito: Felipe Amarelo/Divulgação

A história da Aids é muito ligada ao preconceito. Quando a doença surgiu, 1981, a única semelhança entre os casos da imunossupressão causada pela doença, que matava de diferentes formas, era a homossexualidade dos homens infectados. A doença ganhou o apelido de “gay compromise syndrome” e não era difícil vê-la relacionada com o pecado e a subsequente punição pela relação sexual entre homens. Só um ano depois, com o primeiro caso entre hemofílicos, a doença começou a ser vista com outros olhos, ao menos na comunidade médica. A doença chegou ao brasil em 1983, mas as autoridades. sabe-se lá por que, não acreditavam que ela se tornaria um problema por aqui, o que obviamente aconteceu.

É esse o cenário de “Os Primeiros Soldados”, de Rodrigo de Oliveira, em cartaz no Cine Metrópolis, na Ufes, e em outras capitais Brasil afora. Com olhar delicado, Rodrigo acompanha um grupo de amigos LGBTQIA+ no momento em que a doença se espalhava em Vitória. “É o filme que eu queria e precisava ter visto na minha adolescência, saindo do armário e encontrando, ali nos anos 1990, uma comunidade que apenas começava a se recuperar do pior da devastação da epidemia da Aids”, explica o diretor e roteirista.

No filme, acompanhamos Suzano (Johnny Massaro), um jovem que volta de um período de estudos fora do país e sente algo diferente acontecendo com seu corpo. Ele tenta proteger sua família e se aproxima de outras duas pessoas também convivendo com o vírus, Rose (Renata Carvalho) e Humberto (Vitor Camilo) - os três criam um núcleo afetivo de apoio, carinho e sustentação, o coração de “Os Primeiros Soldados”.

Rodrigo realizou vasta pesquisa nos arquivos dos primeiros casos de HIV/Aids do Espírito Santo, ainda no período em que se sabia pouco sobre a doença, e conversou com profissionais que estiveram na linha de frente do combate à epidemia da época. “Os Primeiros Soldados” é bem eficiente ao se contrapor ao que se filmou sobre o período e sobre a figura do homossexual trágico, que inevitavelmente levará uma vida miserável e morrerá.

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Filme "Os Primeiros Soldados", de Rodrigo de Oliveira. Crédito: Felipe Amarelo/Divulgação

“Lá no começo da epidemia as pessoas já viviam com HIV sim, mesmo que o fim estivesse no horizonte. A maior descoberta do filme foi elogiar essa vida, a celebração possível para corpos que estavam, sim, doentes, mas que insistiam em sonhar, em amar, em buscar uma saída, precária que fosse", explica Rodrigo.

É muito interessante como o filme trata a inevitabilidade da morte não de forma trágica, mas de maneira melancólica. Quando Suzano, Rose e Humberto se isolam no sítio, na segunda metade do texto, o arco é obviamente triste, mas é também de amizade, acolhimento, da esperança de quem acreditava que tudo poderia mudar com um novo remédio, um novo tratamento, uma notícia do namorado estrangeiro de Suzano, uma figura quase etérea no filme, como seria a cura naquele momento. 

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Filme "Os Primeiros Soldados", de Rodrigo de Oliveira. Crédito: Felipe Amarelo/Divulgação

Funciona muito bem também as relações de Suzano com a irmã, Maura (Clara Choveaux), e o sobrinho, Muriel (Alex Bonini), cuja identificação com o tio é inicialmente bonita, mas ganha contornos dramáticos de quem vê a história inevitavelmente se repetir. Em determinado momento, acompanhar os personagens de “Os Primeiros Soldados” traz um mix de admiração e crueldade, pois já conhecemos seus destinos mesmo que torçamos por eles e nos encantemos com as amizades em tela.

“Os Primeiros Soldados” também é ótimo ao recriar as festas da época, as roupas, os cortes de cabelo e principalmente as filmagens. Ao ter Humberto como estudante de cinema, o filme torna orgânica a estética oitentista das imagens em VHS; Vitor aprendeu a operar a câmera (que não era VHS) para os registros do filme. As festas também aproximam o espectador do filme, diminuindo as quase quatro décadas que separam a trama dos dias hoje, pois não são tão diferentes das festas realizadas hoje e despertam a identificação, o "poderia ser eu".

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Rodrigo de Oliveira (de boné vermelho) durante as filmagens de "Os Primeiros Soldados". Crédito: Felipe Amarelo

Esse distanciamento também é encurtado no diálogo entre as épocas - mesmo quatro décadas depois, o Brasil ainda é um país extremamente homofóbico, transfóbico e sorofóbico. “Na boca do fascismo que assola o Brasil, é preciso devolver esse tema para a sociedade, atualizá-lo, e enfrentá-lo, porque a Aids é ainda uma questão do presente. A cada 15 minutos, uma pessoa é infectada pelo vírus no Brasil, e ainda morrem perto de 11 mil pessoas por ano no país por conta da Aids”.

Para o cineasta, é necessário olhar para o passado para se iluminar o presente. “A gente está sentindo na pele o preço do esquecimento, o fascismo conta com a nossa falta de memória, e eles não vão vencer (...) Não há saída fora da criação de uma comunidade solidária real e verdadeiramente inclusiva, que abrace as demandas de cada uma das letras representadas pelo LGBTQIAP+ e, sobretudo, não existe caminho fora da política e do ativismo. O que Suzano, Rose, Humberto e a comunidade que se forma em torno deles fazem é o esboço de um movimento político em defesa da vida e da dignidade. Isso vale hoje mais do que nunca” conclui Rodrigo.

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