Crítico de cinema e colunista de cultura de A Gazeta

Caê Guimarães: “A grande literatura conta a história de fracassos”

Em "Encontro Você no Oitavo Round", seu primeiro romance, Caê Guimarães conta uma história de redenção que tem o boxe como pano de fundo. Livro é o vencedor do prêmio Sesc de Literatura de 2020 e tem lançamento em live nesta terça (24)

Vitória
Publicado em 24/11/2020 às 04h02
Escritor Caê Guimarães
Escritor Caê Guimarães. Crédito: Gui Castor/Divulgação

Em períodos curtos e pontuais, Caê Guimarães atinge seu leitor. Seja na poesia de obras como “Por Baixo da Pele Fria”, sua estreia, ou nas crônicas de “De Quando Minha Rua Tinha Borboletas”, o texto do autor nascido no Rio de Janeiro e criado no Espírito Santo é composto de pequenos e precisos golpes. Assim, não é de se estranhar que “Encontro Você no Oitavo Round”, seu primeiro romance, fale sobre a “nobre arte”.

Livro vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2020 na categoria Romance, “Encontro Você no Oitavo Round” (editora Record, R$ 34,90) não é bem um livro sobre boxe, mas sim uma obra sobre a alma humana, sua vaidade, suas pequenas vitórias e, principalmente, quedas e redenções. O livro, com lançamento virtual em live transmitida nesta terça-feira (24), às 20h, pela página do Prêmio Sesc no Facebook e pelo YouTube Sesc Brasil, acompanha Cristiano Machado Amoroso, um boxeador de 40 anos às vésperas de sua última luta e às voltas com diversas questões que o levaram até aquele momento.

“O universo da luta sempre esteve presente na minha vida. Meu avô paterno, seu Félix, praticou pugilismo na juventude e colocou isso na minha vida. Ele nos acordava (Caê e o irmão) na madrugada para ver as lutas na TV aberta e nos explicava sobre o boxe, o estilo de cada lutador”, conta Caê, em entrevista à coluna.

Capa do livro "Encontro Você no Oitavo Round", de Caê Guimarães. Crédito: Editora Record
Capa do livro "Encontro Você no Oitavo Round", de Caê Guimarães. Crédito: Editora Record

O autor faz uso não apenas desse aprendizado, mas também da relação afetiva que tem com o boxe para entregar uma narrativa dura, mas calorosa - nós, leitores, logo nos interessamos por Cristiano, o protagonista e narrador, um “cara cortada”, mas também um cara sensível e cheio de reflexões. Aos poucos, vamos entendendo seu passado, sua história e sua origem para construirmos, em nosso imaginário, um personagem complexo e cheio de camadas.

O boxe já foi explorado na literatura por autores como Julio Cortázar, Jack London e Norman Mailer, além, claro, de ter sido levado para os cinemas em clássicos como “Rocky: Um Lutador”, “Touro Indomável” e “Menina de Ouro”. Para Caê, o esporte e a arte sempre se relacionaram: “(Vladimir) Nabokov, Miles Davis e Picasso praticavam boxe, o que é um paradoxo, porque é uma luta violenta, agressiva, mas sempre esteve de braços dados com o universo artístico”.

Caê alinha bem as duas artes e traça diversos paralelos entre uma luta de boxe e a produção literária. “A ideia da queda está sempre presente, seja na luta ou em um texto. Você pode ser perder em um texto a qualquer momento, pode chegar a um ponto em que não sabe mais para aonde ir e ter que parar ali”, relaciona.

Caê Guimarães

Escritor

"Eu tenho cada vez mais claro pra mim que a grande literatura conta a história de grandes fracassos, de frustrações. Contar histórias de campeões é legal, mas os personagens que nos são mais caros são os da inadequação, da queda, da tentativa, da frustração"

“Encontro Você no Oitavo Round” tem arcos bem definidos: a apresentação de Cris, seu encontro com a jornalista Esther e, claro, a luta. É curioso notar que cada arco tem uma narrativa diferente. Enquanto o primeiro é mais duro, reflexivo, cheio de monólogos interiores do lutador, o segundo representa uma quebra, com uma nova voz que não chega apenas para fazer o texto caminhar.

“Eu quase emperrei sem a voz da Esther”, revela Caê. Foi só com a voz da jornalista e sua importância na jornada de Cris que o autor conseguiu fechar, no final do ano passado, a história que desenvolvia desde 2011. “Não queria uma figura feminina figurativa, por isso ela tem uma responsabilidade maior, é ela quem vira a chave da narrativa”, pondera.

A presença da jornalista permite que Caê, também jornalista, desfira seus golpes contra o jornalismo e a atual cultura de celebridades e banalidades. “Vou soltando jabs e diretos no jornalismo, no universo das lutas e na vaidade humana. O Cris é um outsider nessa cultura da likes”.

O fato de ter em seu protagonista um lutador em final de carreira, que quase chegou lá, mas viu seu tempo passar, faz de “Encontro Você no Oitavo Round” uma obra de fácil empatia - quantos, afinal, são os vencedores? A construção de um personagem complexo, que revê suas escolhas e se prepara para um desfecho que significa tudo para ele, é de fácil identificação com o leitor.

“Eu tenho cada vez mais claro para mim que a grande literatura conta a história de grandes fracassos, de frustrações. Contar histórias de campeões é legal, mas os personagens que nos são mais caros são os da inadequação, da queda, da tentativa, da frustração. À medida que a gente vai amadurecendo, vai olhando para trás e pensando em quantos ficaram pelo caminho”, explica Caê, ressaltando que isso tudo se resume em uma frase dita por Esther no livro: “talvez você só esteja preparado para deixar no mundo gestos inconclusos”.

A LUTA

Voltando aos arcos, o livro aproveita o tempo para detalhar a luta em todos os seus rounds, ou quase isso… Nesse momento, é fácil perceber que o autor estudou o esporte, os movimentos dos lutadores, e fala com propriedade sobre eles. “Mergulhei em lutas que me serviram de fonte de inspiração para as sequências que descrevo”, diz. As dores de Cris, de fato, são sentidas pelo leitor - tanto as dores inferidas a ele no ringue quanto as causadas pela vida.

Mas o grande charme de “Encontro Você no Oitavo Round” é justamente misturar a descrição das lutas de boxe com a luta interna de seu protagonista contra seus demônios, uma alegoria para conquistas, objetivos e realizações pessoais. Caê une essa narrativa única a um universo familiar descrito por ele nas páginas. A história se passa entre Vitória e Vila Velha, o que é facilmente identificável pelas referências contidas no texto. “É um livro sobre pugilismo. Eu não podia perder a chance de ambientar essa história em uma cidade chamada Vitória (risos)”.

Além das referências a Vitória (e Vila Velha), o autor enche o livro de afeto e lembranças familiares nos personagens secundários como o sapateiro cego que conserta suas luvas, o “maluco” do bairro em que cresceu, o bar da esquina, a academia de boxe ou o treinador linha dura. Todos eles baseados em lugares e pessoas que de alguma maneira marcaram a jornada pessoal de Caê. “É meu primeiro romance, por isso eu não quis me dissociar da história. Foi uma escolha consciente”, pondera o autor.

Caê Guimarães

Escritor

"A ideia de ambientar a história dentro do pugilismo sempre me acompanhou. O pugilismo tem uma carga dramática bacana pra narrativa. Tanto é que de todas as lutas, é a que mais foi explorada pela literatura e pelo cinema"

“Encontro Você no Oitavo Round” é um romance diferente. Os já citados períodos curtos se associam a quebras de ritmos e até a uma métrica quase musical em alguns momentos. “O (Fransico) Grijó (secretário de Cultura de Vitória e escritor) leu e falou que era ‘jazzístico’. Eu realmente ouvi muito jazz (risos)”.

A prosa poética presente em alguns momentos não é gratuita, ela funciona em favor da narrativa. “Gosto dos períodos curtos. Eu queria esse ritmo, essa essa quebra, essa variação. Mas é jazz, não é rock progressivo. Então é picado”, detalha Caê, para completar em seguida. “Eu queria esse ritmo, essa musicalidade, mas a mão do poeta não podia pesar demais. Não queria um livro de prosa poética, queria um romance”.

O primeiro romance de Caê é uma leitura rápida e prazerosa, mas também é densa. “Encontro Você no Oitavo Round” é uma obra pop, de fácil consumo, mas cheia de camadas. Mergulhamos nos últimos dias de Cris como boxeador e dividimos com ele suas lembranças, seus questionamentos, suas angústias. O livro é um roteiro pronto para ser filmado. É possível ler e imaginar cada cena, cada sequência… Na verdade, impossível é não fazê-lo. O boxe é a ambientação, a metáfora, a alegoria para uma jornada de vida e redenção.

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Rafael Braz

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