“Cães de Caça” tem início em dezembro de 2020, um momento crítico da pandemia, quando um senhor tossindo muito e aparentemente bêbado é proibido de entrar no ônibus sem máscara. Após brigar com o motorista e tentar entrar à força, o sujeito é “demovido” da ideia por Kim Gon-Woo (Woo Do-Hwan), um lutador de boxe que tentava pegar o mesmo coletivo. A série coreana da Netflix não é uma obra sobre a pandemia de Covid-19, mas usa com inteligência as mudanças sociais causadas por ela para construir seu drama.
Escrita e dirigida por Kim Joo-hwan, “Cães de Caça” tem início quase como uma série esportiva. Em um torneio (sem plateia, devido à pandemia), Gon-woo massacra os adversários até chegar à luta final, contra Hong Woo-Jin (Sang-yi Lee), um boxeador de estilo completamente diferente, mas que também chegou facilmente à final. Após a luta, eles saem para jantar até como uma forma de respeito um pelo outro.
É muito interessante como a série, já de início, cria personalidades tão distintas para seus protagonistas. Gon-Woo é disciplinado, respeitoso, enquanto Woo-Jin é abusado, provocador e pouco paciente – o estilo de luta de cada um deles representa essas personalidades de maneira muito eficaz. Eles criam um vínculo real a partir de suas similaridades, mas, principalmente, por enxergarem no outro algo que lhes falta.
O boxe, vale ressaltar, é apenas uma ambientação. Gon-Woo luta para conseguir dinheiro para sua mãe pagar os empréstimos adquiridos para manter seu café de pé; a pandemia acabou com o movimento, mas o dono do imóvel não abaixou o valor cobrado pelo aluguel. Paralelamente, a série apresenta outro núcleo, no qual Kim Myeong-gil (Park Sung-woong) mostra um tipo de esquema financeiro para comprar um hotel e abrir um cassino. Gradualmente, o texto traz a complexidade dessa engrenagem – através de uma empresa, Myeong-gil dá golpes em agiotas e em pequenos empresários, como a mãe de Gon-Woo, com dificuldades de sobreviver.
Woo-Jin, um ex-cobrador de agiotas, apresenta Gon-Woo ao Sr. Choi (Huh Joon-ho), um ex-agiota que agora empresta seu dinheiro sem juros para os mais necessitados. O roteiro é inteligente ao resolver logo seus mini-conflitos enquanto desenvolve o arco principal. Assim, “Cães de Caça” parece estar sempre em movimento, mesmo quando recorre a algumas repetições narrativas – os oito episódios de cerca de uma hora poderiam facilmente ser reduzidos para cinco.
“Cães de Caça” traz muitos personagens e tramas que inevitavelmente se encontram. A série logo deixa de ser uma obra sobre boxe ou até mesmo sobre seus dois protagonistas, se transformando em algo maior, mais complexo. Enquanto os pobres vivem a crise instaurada pela pandemia, os ricos se divertem em festas clandestinas e aplicam golpes que os deixam ainda mais ricos.
A série, baseada na webcomic “Sanyanggaedeul”, de Jung Chan, tem ótimas cenas de ação. É curioso como quase toda a violência da narrativa se dê por lutas corporais, nunca com a utilização de armas de fogo, o que obviamente funciona a favor dos dois exímios boxeadores que o texto tem como protagonistas. As sequências são filmadas em takes relativamente longos, dando ênfase às coreografias e à fluidez dos movimentos de Gon-Woo e Woo-Jin, nos fazendo acreditar que eles realmente são muito bons naquilo e capazes de derrotar as hordas de capangas que normalmente surgem do nada.
Respeitando suas origens, a série em vários momentos se aproxima de uma história em quadrinho. Nas lutas, é possível imaginar a sequência de quadros ganhando vida, o que é reforçado pelas boas atuações de Woo Do-Hwan e Sang-yi Lee, sempre entre o exagero, marca dos dramas coreanos e também dos mangás, e um tom mais sóbrio que combina com a pegada da série.
Há problemas narrativos, como uma personagem importante que some após uma virada, e outros de desenvolvimento, com personagens que ganham destaque no terceiro ato sem terem sido devidamente construídos, mas “Cães de Caça” ainda assim funciona. A proximidade da trama com acontecimentos reais, e seu estilo mais “pé no chão” tornam a série coreana da Netflix uma das boas surpresas do ano na plataforma.
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