Duas séries brasileiras recentes, a ótima “Sintonia” e a constrangedora “Negociador”, fazem referência ao chamado “Novo Cangaço”, grupos fortemente armados que tomam cidades interioranas de assalto e assaltam agências de bancos. Não é incomum que os criminosos usem explosivos, façam reféns ou até mesmo isolem a cidade – a opção por cidades pequenas se dá pelo fato de a segurança ser muito menor. A denominação diminui, de fato, a relevância social do que foi o movimento do cangaço, nascido nas regiões semiáridas do Nordeste brasileiro. Tornando famosos nomes como Lampião e Maria Bonita, o cangaço foi, sim, um movimento de banditismo, mas também uma referência de resistência social, de contra-ataque à opressão.
“Cangaço Novo”, série brasileira da Amazon Prime Video, mistura esses dois mundos, o dos grupos armados assaltando bancos em pequenas cidades e a referência de resistência do grupo liderado e eternizado por Lampião. Produzida pela O2 Filmes e dirigida por Fábio Mendonça (“Filhos do Carnaval”) e Aly Muritiba (“Deserto Particular”), a série acompanha Ubaldo (Allan Souza Lima), que deixa São Paulo rumo à fictícia cidade de Cratará, no sertão cearense, em busca da herança de uma pessoa que ele nem conhece.
Chegando lá, porém, a vida de Ubaldo muda; ele conhece suas irmãs, Dinorah (Alice Carvalho) e Dilvânia (Thainá Duarte), e descobre na verdade ser filho de Amaro Vaqueiro, um cangaceiro admirado e respeitado por aquelas bandas. Ainda, não demora para ele perceber que Dinorah seguiu o legado do pai e se tornou uma das atuais lideranças de um grupo de cangaceiros que faz pequenos assaltos a bancos em cidades próximas.
“Cangaço Novo” não tem pressa em sua narrativa. A série tem início com o choque, mas logo volta para explicar como Ubaldo chegou àquele ponto. Ao final do primeiro episódio, tudo já está contextualizado e os novos caminhos já são sinalizados. Precisando de dinheiro, Ubaldo obviamente se envolve com o grupo da irmã e faz com que eles mirem cifras mais altas.
O protagonista tem uma função de fácil compreensão no roteiro, cabendo a ele ser os olhos do espectador dentro do cangaço, entender como tudo funciona para que nós possamos entender também. Ubaldo, em sua busca por descobrir quem é, também funciona como o centro dramático, tendo que superar a desconfiança de Dinorah para se entender com a família e, principalmente, como filho de Amaro Vaqueiro.
“Cangaço Novo” é um faroeste à brasileira, um nordestern, com bastante ação, violência e sem medo de deixar alguns corpos pelo caminho. É interessante perceber como o texto nos faz entender que a morte faz parte da vida do cangaço, seja a de um animal pela seca ou um bandido de “morte morrida”. Para aquelas pessoas, vive-se o luto por alguns momentos e a vida segue, pois não há outra opção.
Em oito episódios, a primeira temporada ensaia alguns rumos a serem explorados mais adiantes. Vendida como uma saga de três irmãos, é fácil ver as diferentes perspectivas de cada um: a violência, a religião ou a política. A primeira temporada de “Cangaço Novo” transcorre durante o período eleitoral em Cratará, com o playboy Gastão Maleiro (Bruno Bellarmino) pleno favorito à reeleição. A família Maleiro controla a região há mais de 40 anos, pouco se importando com a população, mas sempre com muito poder financeiro. Neste cenário, Ubaldo reencontra sua melhor amiga de infância, Leinneane (Hermila Guedes, de “O Céu de Suely”), atual esposa do candidato de oposição aos Maleiro.
“Cangaço Novo” é ótima ao mostrar, sem pudor algum, a conexão entre política e o crime organizado, de todos os lados. Os cangaceiros, na verdade, são parte da engrenagem da cidade, são lideranças sociais, benfeitores quase altruístas. A chegada de Ubaldo reforça essa característica e nos faz torcer por quem está ao lado do povo. Nas operações de que participa, Ubaldo deixa claro que o dinheiro a ser roubado é o do banco, e não o dos clientes. Ainda, ele abole a violência do bando, o que até causa um certa cisão. Em outra sequência, Dinorah parte para cima de um “colega” que estupra uma jovem e deixa claro não haver espaço para estuprador no bando.
A narrativa tem boa cadência, alternando momentos de ação a outros mais dramáticos, que fazem o roteiro caminhar de um ponto a outro. “Cangaço Novo”, porém, pode ser frustrante se a Amazon decidir não renovar a série para uma nova temporada. Quando o oitavo episódio se aproxima do fim, o espectador passa a lidar com aquela sensação de “não vai dar tempo de fechar tudo” e a questionar se parte dos episódios anteriores não seriam melhores utilizadas para dar uma conclusão ao menos temporária à trama.
“Cangaço Novo” tem fotografia e direção de arte de cinema, além de atuações gigantes. Allan Souza Lima se sai bem, mas é a dupla Alice Carvalho e Thainá Duarte que brilha. As atrizes ocupam a tela, fazendo com que os olhos do espectador as sigam para onde forem – a intensidade de Alice é contraposta ao silêncio de Thainá. Dinorah e Dilvânia se completam, com a explosão constante da primeira em oposição ao olhar da irmã que parece sempre pronta a implodir. A série ainda tem bons coadjuvantes, como Ênio Cavalcante, mas nem todos bem aproveitados; o ótimo Pedro Wagner, por exemplo, está constantemente em tela, mas com pouquíssimas falas.
Ao fim, “Cangaço Novo” é ótima. Violenta, emocionante e bem mais profunda do que aparenta ser, principalmente se o espectador passa a se questionar a construção daquele cenário. Foi o nome de Muritiba que me atraiu à série, mas foi todo o universo criado e aqueles personagens tão interessantes que mantiveram o interesse alto por oito episódios que deixam a vontade de continuar assistindo à nova série brasileira da Amazon.
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