Crítico de cinema e colunista de cultura de A Gazeta

"Cidade Invisível", da Netflix, é um mergulho pop no folclore brasileiro

Criada por Carlos Saldanha ("Rio"), série "Cidade Invisível", da Netflix, mistura fantasia e mundo real para contar a história dos seres fantásticos do nosso folclore

Vitória
Publicado em 03/02/2021 às 03h00
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Série "Cidade Invisível", da Netflix. Crédito: ALISSON LOUBACK / NETFLIX

Em “Deuses Americanos”, um de seus livros mais populares, Neil Gaiman cria uma aventura fantástica de uma vindoura guerra entre os deuses antigos e as novas divindades. Na obra, o autor inglês mistura mitologia e folclore do Velho Mundo aos deuses atuais como o Capital, a Mídia e a Tecnologia, os tais “deuses americanos”. Já “Equinox”, série da Netflix, mergulha no folclore dinamarquês em uma trama que mistura clima policial e mitologia.

A mitologia nórdica se tornou pop em séries como “Vikings” ou jogos como “Assassins Creed Valhalla”, por que então dificilmente olhamos para o nosso folclore da mesma maneira? Claro, Monteiro Lobato já o fez no “Sítio do Pica-pau Amarelo”, que introduziu personagens do folclore brasileiro para várias gerações, mas esses personagens poucas vezes ganharam um tratamento adulto como acontece agora em “Cidade Invisível”, série brasileira que estreia na Netflix nesta sexta (5).

Criada e produzida por Carlos Saldanha (“Rio”) em sua primeira grande incursão pelo live-action (havia dirigido um segmento de “Rio, Eu Te Amo”), “Cidade Invisível” é uma mescla de fantasia e policial. A trama acompanha Eric (Marco Pigossi), um policial ambiental que, durante uma investigação da morte de um boto, se depara com um complexo mundo de seres poderosos vivendo no underground do Rio de Janeiro, uma engrenagem que pode ter ligações com um trauma de seu passado. À medida que ele se aproxima da verdade, coloca sua vida e a das pessoas que ele ama em risco.

“Cidade Invisível” abraça o folclore brasileiro com maestria e muitas possibilidades. Nos quatro episódios disponibilizados para a imprensa (são sete no total), o público é apresentado ao mundo fantástico, a cidade invisível do título, pela investigação de Eric - nos surpreendemos juntos com ele a cada descoberta.

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Série "Cidade Invisível", da Netflix. Crédito: ALISSON LOUBACK / NETFLIX

Apesar de centrada em Eric, a série apresenta bem seus personagens secundários antes mesmo que os caminhos de todos se cruzem. O núcleo de Inês (Alessandra Negrini), Camila (Jéssica Córes), Isac (Wesley Guimarães) e Tutu (Jimmy London) é o que rouba a cena. A composição da personagem de Alessandra Negrini é incrível, um mix de bruxa e ser mitológico que em muito lembra a caracterização de Rebecca Ferguson em “Doutor Sono” - o ar blasé da atriz, intencionalmente ou não combina com a personagem.

O roteiro ainda tira tempo para desenvolver uma subtrama ambiental que serve apenas para dar estofo à trama principal - não é essencial, mas tampouco é descartável. Da mesma forma, o texto da trama policial pouco interessa, mas serve como apoio para o muito mais interessante arco fantástico, o grande centro da série.

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Série "Cidade Invisível", da Netflix. Crédito: ALISSON LOUBACK / NETFLIX

Carlos Saldanha e os roteiristas tratam os seres mitológicos com respeito e admiração. O texto também se permite alternar entre a exposição de alguns poderes, como os de Isac, e personagens mais misteriosos como Inês. Há um excesso de didatismo em determinadas cenas, uma necessidade de explicar quem é cada um daqueles seres e suas características - vale lembrar que a série será lançada em 190 países; o fim da já citada “Equinox”, por exemplo, despertou raiva no público que não conhecia o folclore dinamarquês.

É interessante como, em alguns momentos, quando se aproxima de um mais de terror rural, a série lembra o cinema do capixaba Rodrigo Aragão, que adora abraçar o terror folclórico em seus filmes e já até revelou vontade de dirigir um filme de fantasia. Esse passeio de “Cidade Invisível” por gêneros e estilos também é um de seus pontos fortes, pois apesar de abraçar a fantasia e um mundo mágico, ela sempre mantém os pés na realidade, uma forma de se manter próxima de seu público e fazer com que ele se identifique com os personagens. No Rio de Janeiro da série, os seres fantásticos estão entre nós, nas periferias, nas ruas, como todas as outras pessoas que a sociedade não enxerga.

“Cidade Invisível” tem algumas conexões forçadas que tiram um pouco de sua força, mas, mesmo não sendo perfeita, é um grande acerto. Carlos Saldanha e a Netflix abrem uma série de possibilidades em um mundo de poucas limitações criativas. É uma série com a cara do Brasil, mergulhada no nosso folclore, mas com potencial para alcançar o mundo.

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