“Clonaram Tyrone” definitivamente não é o filme que você espera encontrar no catálogo da Netflix, que normalmente opta por projetos mais populares, seguros ou de prestígio, com grandes diretores. Na verdade, o filme do diretor Juel Taylor se encaixaria bem ao lado da ótima (e estranha) série “Eu Sou de Virgem”, na Amazon Prime Video, mas talvez os nomes de John Boyega e, principalmente, Jamie Foxx tenham seduzido a ainda mais famosa plataforma de streaming.
Editor e operador de som, além de roteirista e diretor, Juel Taylor faz de “Clonaram Tyrone” seu projeto mais pessoal e autoral até hoje. O filme mistura ficção científica, suspense e comédia a elementos de terror em uma estética blaxploitation (essencial movimento do cinema setentista com foco na cultura negra). O resultado é um filme granulado, ligeiramente anacrônico, com trilha sonora e ritmo narrativo impecáveis.
É curioso como o trailer do filme vende o mais puro caos, mas o filme opta por gastar tempo até que tudo se encaixe, não muito diferente do que Edgar Wright faz em “Heróis de Ressaca” (um dos piores títulos da história das traduções no Brasil). “Clonaram Tyrone” apresenta Fontaine (John Boyega), um traficante que, após algumas desavenças, é assassinado por rivais. No outro dia, porém, Fontaine acorda normalmente e segue com sua rotina, para o choque de pessoas que o viram morto. O que teria acontecido?
O texto então se desenvolve como um suspense de teoria da conspiração, com um grande mistério sendo aos poucos revelado. Sem entrar em spoilers, dá para dizer que o Fontaine, ao lado do cafetão Slick Charles (Jamie Foxx) e da prostituta Yo-Yo (Teyonah Parris), descobrem um laboratório secreto com um plano sinistro para a pequena comunidade de Glen.
“Clonaram Tyrone” tem um roteiro esperto, cheio de boas piadas e diálogos que nunca parecem forçados ou expositivos. O filme tem no trio de protagonista um pilar de sustentação para uma trama quase surreal. Apesar da óbvia surpresa com todas as revelações, Boyega, Foxx e Parris apresentam sempre um mix de descrença, mas sem medo de abraçar o absurdo da história – afinal, os negros americanos passaram, e ainda passam, por vários absurdos ao longo da História.
O filme de Juel Taylor usa o humor e o absurdo para entregar suas ideias sem ser panfletário. O roteiro lida com formas diversas para manter o gueto sempre sob controle, evitando uma revolução popular que questione o status quo. Essa ideia fica clara com a metodologia utilizada pelos conspiradores, utilizando hábitos culturais dos negros americanos para mantê-lo “controlados”. Além disso, há uma grande crítica à falta de mobilidade social dos moradores do gueto – não é que os protagonistas são um traficante, uma prostituta e um cafetão.
Para construir esse universo, Taylor usa um anacronismo visual que não chega a ser gritante, mas que oferece ao filme um estilo único. Da imagem granulada, remetendo aos anos 1970, às tecnologias utilizadas e aos carros nas ruas, “Clonaram Tyrone” parece se situar em um recorte temporal só seu, uma pegada setentista misturada ao final dos anos 1990.
É muito interessante como o Taylor encontra a cadência certa pra o filme, tornando tudo interessante até para quem já viu o trailer (que entrega demais). O fato de o diretor ser roteirista antes de dirigir ajuda nesse ritmo e na construção dos personagens além dos óbvios estereótipos que o filme faz questão não apenas de ressaltar, mas também de usar como parte da trama.
O elenco abraça o surrealismo do texto, mas também oferece sutilezas em cada personagem. Fontaine é um sujeito a ser respeitado e até temido, mas tem uma delicadeza e carrega uma dor visível em cada cena. Yo-Yo é uma prostituta que vive dizendo que vai se aposentar, mas nunca o faz e se culpa por isso. Por fim, Slick Charles é o alívio cômico óbvio e potencializado pelo tempo de humor de Jamie Foxx.
Ousado e original, “Clonaram Tyrone” é absurdo de uma maneira bem controlada, nunca deixando que o filme saia do controle ou se torne totalmente surreal. Essa característica é responsável por um filme de pegada pop, mas também um que parece incompleto, quase como se tivesse uma continuação engatilhada, o que não deve ser o caso. Sem se aprofundar nas possíveis consequências de tudo o que mostra, o filme de Juel Taylor ensaia um final feliz, mas opta por um anti-clímax que pode deixar um retrogosto agridoce no espectador, apesar de ser um dos melhores lançamentos recentes da Netflix.
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