A segunda temporada de "Coisa Mais Linda" chegou à Netfilx em 19 de junho com algumas missões. A primeira delas, claro, era dar continuidade à história iniciada em 2019, que se encerra com um grande gancho para novos episódios. Além disso, a série brasileira também tinha a tentativa de se desvincular de uma estética "Rio de Janeiro para gringos", o que até tenta fazer mostrando mais a realidade de Adélia (Pathy Dejesus) e trocando o idioma da música de abertura - "Garota de Ipanema" agora é cantada em português. A discussão da série, porém, vai além dessas questões; "Coisa Mais Linda" é uma trama sobre libertação feminina e, principalmente, empatia.
Nos novos episódios, acompanhamos Malu (Maria Casadevall), Mel Lisboa (Thereza), Adélia (Pathy Dejesus) e Ivone (Larissa Nunes) lidando com os acontecimentos do final da temporada passada e com novas jornadas em suas vidas. Me sentei virtualmente com Mel Lisboa e Pathy Dejesus para falar sobre a série e o resultado é o que você encontra abaixo.
Na entrevista, as atrizes reforçaram o tempo todo como as gravações e os encontros proporcionados por elas formaram laços de amizade e aprendizado. "Tivemos sorte de termos quatro mulheres engajadas na luta feminista", afirmou Pathy. Mel, em seguida, ressaltou que não sabia nada ou quase nada sobre a luta feminista negra, uma vez que a História foi registrada por homens brancos. Foi na convivência com Pathy e as questões da Adélia na série que a atriz entendeu outras questões. As atrizes agora esperam que essa troca funcione também com o público da série Confira a entrevista e siga o colunista também no Twitter.
Pathy, nas entrevistas de divulgação da primeira temporada você comentou que foi doloroso dar vida à Adélia porque ela é uma mulher sem voz, diferente da realidade em que você vive hoje. Como foi voltar pra essa personagem e passar novamente por esse processo?
Voltar pra personagem foi intenso. Primeiro por questões pessoas, eu tinha acabado de ser mãe, o Rakim estava com dois meses e meio, então eu estava no meio do meu puerpério. Lendo o roteiro e assistindo à série, óbvio, a gente entende que essa mulher se intensifica nas suas emoções, nos seus sentimentos. O roteiro está um pouco mais rico pra Adélia nessa segunda temporada, ela tem questões próprias. Ela para de orbitar um pouco em torno da Malu e tem a sua própria história. Eu estava muito afetada por questões pessoais e a gente acaba colocando mais isso que você falou, de voltar pra um lugar em que você tem que lidar com coisas... É muito do trabalho da atriz, né? Ter que lidar com isso a todo momento. A Mel fala muito bacana sobre isso, sobre o não-julgamento e a doação da atriz, a gente não tem muita opção, tem que fazer. Nesse lugar específico, principalmente se tratando de um lugar de estrutura racial, de racismo, é doloroso a todo momento, nunca é confortável. Por mais que eu esteja aparentemente muito dona da situação fazendo, é muito difícil voltar a alguns lugares.
Mel, nessa segunda temporada, a Thereza, além dos dramas pessoais, tem a questão profissional, com ela encarando o desafio da rádio. Queria saber como foi essa preparação pra viver uma radialista e também se você já teve que lidar com algumas escolhas entre a vida pessoal e o trabalho.
A ruptura que acontece entre a primeira e a segunda temporada, se formos estudar a trajetória, é ela ter pedido demissão para voltar para Paris. De repente há o fato trágico que muda a trajetória de todas as mulheres e elas têm uma segunda chance. Ela opta então por tentar ficar em casa, já que a configuração de família dela mudou, e escrevendo seu livro, mas na primeira oportunidade de voltar a trabalhar ela se vê encantada por aquele mundo, que é um desafio pra ela. É um lugar novo, que ela não domina e em que ela se vê tendo que provar que é capaz. São questões da personagem. No meu trabalho como atriz, o que há de interessante, por exemplo, é que eu falo da questão da empatia. Nós como atrizes e artistas literalmente nos colocamos no lugar das personagens. Como a Pathy disse, é questão de não julgar a personagem e entendê-la mesmo que você não concorde com ela. Isso não tem que entrar. Você tem que simplesmente que entender e estar realmente no lugar da personagem. O que eu acho muito interessante do trabalho do ator é que a gente se vê quase na obrigação de estudar os assuntos dos quais a gente vai falar. Se vamos falar da década de 1960 e do Rio de Janeiro, da Era do Rádio, do rádio como um meio de comunicação de massa, pensando na popularidade dele, de como ele oferecia informação e entretenimento às pessoas da época, tenho que entender o que isso representa, o que representa o universo da rádio. A gente precisa fazer com um mínimo de propriedade, saber o que está falando, saber o que você está representando. Eu adoraria ter tido um treinamento de rádio. O Alê (Alejandro Claveaux) faz muito bem o radialista, aquela imposição de voz (imita o companheiro de cena) da rádio antiga, mas foi me dada a direção pra que a Thereza quebrasse, chegasse com uma forma mais natural de falar, que é uma tendência mais contemporânea. Levando em consideração que naquela época seria muito difícil uma mulher dando opinião na rádio, a gente pode encarar como uma obra de ficção mesmo pra fazer paralelos com a falta de voz que a mulher tinha e muitas vezes ainda tem na sociedade.
Pathy Dejesus
A Adélia de "Coisa Mais Linda"
"Nesse lugar específico, principalmente se tratando de um lugar de estrutura racial, de racismo, é doloroso a todo momento, nunca é confortável. Por mais que eu esteja aparentemente muito dona da situação fazendo, é muito difícil voltar a alguns lugares."
Mel, você falou de empatia com as personagens, mas eu queria saber das duas, da Pathy também, se houve empatia com as lutas das outras personagens. Vocês aprenderam, observaram as lutas das outras personagens?
Pathy: A gente aprende a todo momento. Na primeira temporada, até mais do que na segunda, porque os personagens já estão meio calcificados na gente, a gente teve que se ouvir muito. Eu acho que tive uma sorte gigante de encontrar três mulheres na primeira temporada e agora também com a Larissa, quatro mulheres, com quem tive trocas... Não é demagogia, é sincero mesmo, é real. Isso fica muito nítido quando você vê o resultado. Aquilo não é só o resultado de um estudo aprofundado, acho que a troca que a gente teve, principalmente de escuta, da mesma forma que aquelas quatro mulheres são diferentes na ficção, nós viemos de vivências diferentes, somos de gerações diferentes, eu sou um pouco mais velha que elas, e agora tem a Lari que é muito mais nova, tudo isso muda a visão, o olhar, muda as experiências de vida. No caso, eu e a Mel somos mães, as outras não, então a gente se entende nesse lugar e teve muito o que trocar nesta temporada. A experiência da Mel com filhos mais velhos, eu com filho recém-nascido, como a gente colocar isso em cena, como isso agrega pra Adélia e pra Thereza. Tivemos sorte, também, concluindo, de termos mulheres muito engajadas, todas, na luta feminista, no fato de ter uma mulher negra, agora duas mulheres negras, com a Lari, protagonizando, traz um discurso diferente, um olhar diferente. As meninas puderam visualizar melhor essas diferenças à raça, que também é um recorte. Eu sou muito agraciada por estar com essas quatro mulheronas, de verdade.
Mel: Eu queria completar o pensamento da Pathy e fazer das palavras delas as minhas. É interessante você trazer essa questão da empatia das personagens, de entender as outras personagens, mas é inevitável que você, durante o processo, não cruze um pouco nas experiências que a gente teve de processo, de ensaios... E a gente teve uma troca muito maravilhosa. Você vai entendendo as personagens também pelas pesquisas. Tem uma coisa que eu queria trazer, que aconteceu durante as pesquisas da primeira temporada. Às vezes, um jeito de exercitar a empatia, é você exercitar a escuta. Muitas vezes você acha que entende sobre determinado assunto aí alguém fala alguma coisa e você "puxa, nunca tinha pensado nesse ponto de vista". Uma das coisas que a Pathy trouxe lá do início, eu nunca vou esquecer. A gente estava falando de referências de mulheres daquela época, de referências que a gente tava pesquisando em arquivos, documentários, jornais antigos, referências da minha família, da minha avó... Aí a Pathy veio e falou "primeiro que essas questões que vocês estão trazendo de vocês não são as questões da minha personagem. A Adélia não pode sequer pensar nesse tipo de coisa porque ela tem outras coisas pra resolver muito antes disso". Eu não tinha pensado nisso. Outra coisa que ela falou era a falta de referência. A História é contada do ponto de vista branco, o documento da História negra quase inexiste ou é passado de geração a geração, sem uma coisa... oficial. O oficial é homem, branco e hétero. Aí você fala "puxa, tem razão" e passa a entender melhor a luta do feminismo negro, a luta anti-racista, você passa a entender melhor a Adélia e as questões dela. Isso pode ser levado pra todas as personagens e suas questões.
A partir dessas conversas e pesquisas, que tipo de trocas vocês conseguiam ter dentro da estrutura de uma série da Netflix em relação a direção e roteiro? Como vocês conseguiam trazer essas inquietações das personagens pra contribuir com a série?
Pathy: Num primeiro momento a gente teve uma abertura maior porque, como eu falei antes, na primeira temporada a gente estava descobrindo a personagem e, depois disso, como ela se relaciona com outros personagens, a realidade de cada um, pra fazer essa história casar. Num primeiro momento essas trocas e contribuições foram essenciais. Acho que cada uma veio trazendo o que tinha de pesquisa, de ponto de vista que não tava no texto, mas achava que precisava defender pra que aquela personagem se parecesse com aquilo que ela é, viesse com força. Na segunda temporada, essa construção já tava consolidada, a diferença são as questões. Mesmo quando não está no texto, como está enraizado, já está lá, você traz no olhar, na respiração, sabe? As referências que estudei pra fazer a Adélia em 2018, tudo o que estudei na época, é impressionante que quando você volta com o texto, senta com os colegas, coloca um figurino, aquilo vem né, Mel?
Mel: É interessante essa questão de termos construído meio do zero na primeira temporada. O elenco foi escolhido e cada um trouxe suas experiências, suas referências, sua pesquisa e foi se criando aquilo sempre com muita abertura pra opinar, pra falar se achasse uma fala estranha, a gente ia aparando as arestas e sempre teve essa abertura. Na segunda temporada achei até que isso foi mais forte justamente porque o que foi construído na primeira temporada já seria levado inevitavelmente, são as mesmas em outras situações, mais profundas, mais densas emocionalmente falando, não importa... Em situações diferentes em uma narrativa dramaturgicamente falando, até porque é uma continuação. Aquilo que a gente criou no início se manteve porque são as mesmas personagens. Então esse lugar da gente ter a conversa, as leituras, os ensaios com o Caito (Ortiz) e a Julia Rezende sempre foram muito abertos ao diálogo e às opiniões. Claro que tem um monte de gente pra opiniar, a série vem pronta pra você ler e você pode dar uma opinião que, se rolar, muda o texto, muda a cena, cai cena, cai texto... Pra gente fazer aquilo da forma que vai ser melhor pras personagens e pra narrativa.
Mel Lisboa
A Thereza de "Coisa Mais Linda"
"Outra coisa que ela falou era a falta de referência. A História é contada do ponto de vista branco, o documento da História negra quase inexiste ou é passado de geração a geração, sem uma coisa... oficial. O oficial é homem, branco e hétero. Aí você fala "puxa, tem razão" e passa a entender melhor a luta do feminismo negro, a luta anti-rascista, você passa a entender melhor a Adélia e as questões dela."
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A gente está vivendo um momento atípico, com pandemia e depois estourando os protestos, e a gente espera que a população esteja ficando em casa. Por que vocês acham que "Coisa Mais Linda" é uma série adequada para este momento?
Pathy: A gente não acha, a gente tem certeza (risos). Brincadeiras à parte, a pandemia e o isolamento serviram de lentes de aumento para um monte de coisa que, na verdade, já acontece há muito tempo. A gente tá falando de racismo, de violência contra a mulher, de direitos negados ou numa movimentação para serem negados, a gente tá falando de tudo isso. É interessante porque a série se passa em 1960 e isso, essa distância de datas, deixa as pessoas um pouco mais de guarda baixa para receber certas informações mesmo que elas sejam no intuito de refletir. A gente vive um momento em que as pessoas não querem receber muito. Às vezes você quer levantar uma bandeira e a pessoa já rejeita. A nossa série, eu acho, é muito feliz nesse lugar. Com essa embalagem de entretenimento a gente consegue plantar certas sementes às vezes até de forma muito sutil, mas que gera uma reflexão dentro da empatia que as pessoas, por exemplo, desenvolvem pelos personagens. Muita gente vai ficar comovida e prestar atenção em feminicídio porque perdemos a personagem da Fernanda Vasconcelos na primeira temporada, sabe? Muita gente vai prestar atenção em situações de racismo porque amou a Adélia. Isso é válido nesse momento, mas não é a pandemia, não é o isolamento, isso só ampliou uma situação que já acontece há muito tempo mesmo.
Mel: A pandemia está amplificando determinadas coisas como, por exemplo, a necessidade que a humanidade tem de consumir arte e cultura e o quão importante é... Eu tenho citado a frase de Nietzsche desde o ano passado e agora ela tá mais forte do que nunca: "a arte existe pra que a realidade não nos destrua". Estamos vivendo um momento tão catastrófico, tão complicado, e aí, de repente, conseguimos ter esse alívio, esse respiro, ou esse momento de reflexão, algo que te faça conhecer uma outra cultura ou qualquer outra coisa que amplie seus horizontes, já que estamos em horizontes tão restritos, levando-se em consideração que as pessoas estão isoladas, ou pelo menos uma parte das pessoas está. A arte tem esse poder de te transportar pra outras realidades, pra te fazer conhecer, ampliar seu conhecimento, pra te sensibilizar, pra tantas coisas... Não foi planejado, claro, felizmente a gente conseguiu concluir a filmagem antes (da pandemia), então a gente pode entregar um produto de qualidade, produzido aqui no país, uma série que te transporta pra uma outra década, que te faz pensar e que tem todo um trabalho de muitos profissionais que se empenharam pra fazer o melhor. A qualidade é inegável em termos de cenografia, figurino, trilha sonora, tudo... E embora não tenho sido planejado, é um momento muito bom (pra lançar a série) porque vai fazer bem pra muita gente assistir à série neste momento, e eu falo isso até por mim, porque toda vez que eu consigo ler um livro, assistir a um filme, ouvir um disco, assistir a um espetáculo de dança na TV, qualquer coisa que me faça suportar a realidade em que estou vivendo, me toca. Que bom que a gente tá podendo mostrar esse trabalho.
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