Nos EUA, segundo números da NCADV - National Coalition Against Domestic Violence (Coalisão Nacional Contra a Violência Doméstica), 10 milhões de adultos sofrem violência doméstica anualmente, uma média aproximada de 20 casos a cada minuto. No Brasil, em 2020, o serviço de denúncias 190 recebeu uma média de uma ligação por minuto com denúncias de violência doméstica, um aumento de 16,3% em relação a 2019, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São esses dados que justificam a violência doméstica quase como o tema central de “Criada” (“Maid”), série da Netflix que adapta o livro “Superação: Trabalho Duro, Salário Baixo e o Dever de Uma Mãe Solo”, de Stephanie Land, para o formato minissérie.
Originalmente lançado em 2019, o livro, uma autobiografia, acompanha a jornada da autora como diarista para sustentar a filha. “Criada” mostra isso, mas adiciona elementos que a tornam mais profunda (não à toa é “inspirada” pelo livro).
A série tem início quando Alex (Margaret Qualley) sai da casa em que mora com Sean (Nick Robinson) apressada, no meio da noite, carregando a pequena Maddy (Rylea Neaeh Whittet) com ela. Sean vinha bebendo demais e não era a primeira vez que tinha comportamento agressivo com a companheira e a filha.
Alex busca de emprego, mas não tem referências, experiências e nem mesmo um endereço. Ela acaba então em uma agência de diaristas e morando em um abrigo para vítimas de violência doméstica. Acompanhamos Alex em alguns trabalhos, construindo relações, e também tentando sobreviver com o pouco que ganha ao mesmo tempo em que ainda lida com Sean, tem que se preocupar com a mãe, Paula (Andie MacDowell, mãe de Qualley), e cria novos laços com pessoas como Nate (Raymond Ablack) e Regina (Anika Noni Rose).
A série criada por Molly Smith-Metzler (uma das roteiristas de “Shameless”) tem algumas características peculiares, entre elas uma alternância de linguagens e utilização de recursos. Com 10 episódios de cerca de uma hora cada, a narrativa é intencionalmente cadenciada para misturar o livro de Stephanie Land com a história de violência doméstica que se torna o verdadeiro fio condutor da trama.
“Criada” se esforça para retratar o problema social como um ciclo. Paula foi vítima de violência doméstica quando estava com Hank (Billy Burke), pai de Alex, e por isso fugiu. A personagem, ironicamente, considera a situação da filha algo normal - Sean, afinal, é uma pessoa querida na cidade em que vivem. Interpretada sempre uns dois tons acima por Andie MacDowell, Paula vive seu próprio ciclo, pulando de relação tóxica em relação tóxica, trocando um problema por outro. Ela não é a única, no entanto, a achar que Alex está “exagerando” em seu comportamento e que a violência pela qual passou é “coisa de casal”.
É quase sádico, assim, que o roteiro coloque a protagonista em situação parecida. A construção do arco principal ajuda devido ao desenvolvimento dos coadjuvantes. Sean é um “cara legal”, trabalhador, adorado por todos e que aparenta se importar muito com Alex e Maddy; da mesma forma, Hank, por quem a repulsa inicial de Alex chega a causar certo estranhamento no espectador, se oferece o tempo todo para ajudar a filha no que ela precisar. Os dois têm muito em comum, inclusive o histórico com bebida e o comportamento que desperta alarmes. Não é à toa, assim, as escolhas de ambos no terceiro ato.
A duração da série chega perto de incomodar, com alguns episódios de poucos conflitos no meio da narrativa que aparentemente não acrescentam tanto à trama, mas é nesses momentos que entendemos os ciclos - o encontro de Alex com uma colega do abrigo mostra isso. Existe uma falsa sensação de normalidade, de que tudo vai se acertar, uma sensação que às vezes coloca a vítima novamente envolvida pelo agressor, que promete mudar e até se comporta bem por algum tempo. “Criada” entende isso e tenta transmitir essa sensação ao espectador, mesmo que nem sempre com sucesso.
“Criada” é uma série forte, com um arco principal tenso, mas é também uma história divertida e usa isso a seu favor. A edição inicial é ágil e ousada, mas essa característica é deixada de lado com o tempo. Isso também acontece com o recurso de linguagem utilizado quando Alex não entende exatamente o que alguém fala ou o que lê - talvez funcione justamente por ser utilizado com cautela, mas poderia ser aproveitado em outros momentos.
O lado “fofo” da série fica com Maddy, uma criança adorável, e com toda dinâmica da pequena com a mãe, uma relação encantadora até nos piores momentos. Paula, por sua vez, oferece ao público arcos agridoces com sua personalidade “porra-louca”, como ela mesmo define. A química de MacDowell com Qualley é ótima e rende boas sequências.
A protagonista é a dona da série com uma personagem que é o porto seguro inabalável da filha, uma mulher decidida e quase sempre com princípios fortes, mas também uma pessoa fragilizada pela situação em que se encontra. Margaret Qualley nunca derrapa e é por isso que acabamos torcendo tanto por Alex e comemorando com ela suas pequenas vitórias.
“Criada” foge das armadilhas de seu texto e entrega uma narrativa distante do melodrama, da dramatização excessiva da pobreza, mesmo com uma trama que poderia caminhar por essa linha. A série conta com atuações que acompanham a qualidade do roteiro e a relevância do tema central. Ao não tornar os agressores em caricaturas de pessoas monstruosas, a série aproxima o público do assunto e o faz questionar sobre comportamentos que nunca deveriam ter sido normalizados.
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