Há no espanhol “O Poço”, filme lançado pela Netflix na última sexta-feira, dia 20, algo que talvez só os serviços de streaming, em tempo de coronavírus, possam oferecer. Tivesse sido lançado nos cinemas, o filme de Galder Gaztelu-Urrutia dificilmente teria grande visibilidade e provavelmente ficaria restrito ao circuito independente. Disponível em uma plataforma popular e de espectro mundial, o filme ganha notoriedade e vira assunto de discussão por sua forte alegoria e pelo final subjetivo para o qual talvez não haja uma explicação exata.
“O Poço”, adianto, não é uma obra que entrega ao espectador uma conclusão satisfatória ou uma interpretação única - por isso, fuja de qualquer texto do tipo “entenda o final” ou “explicando o final” e tire suas próprias conclusões, converse com amigos, discuta nas redes sociais e crie sua teoria.
Na trama criada pelo roteirista David Desola, acompanhamos uma espécie de experimento social que funciona como uma prisão vertical em que tudo gira em torno de comida. Um impecável banquete produzido no nível zero vai descendo e permanece por dois minutos em cada andar, ou seja, os presos do nível um recebem os pratos intocados e a comida, logicamente, vai acabando à medida que a mesa desce de nível. Não se sabe ao certo quantos níveis existem, cerca de 200, mas ninguém se importa com os que estão abaixo.
O tal “poço” do título é chamado de Centro Vertical de Autogestão pela administração. A ideia é criar a consciência de que todos podem comer se cada um consumir apenas o necessário. Para isso, cada detento fica um mês em cada nível. O sujeito pode estar no nível 172 em um mês e, no outro, estar no 5. Em um cenário ideal, ele se lembraria das dificuldades por que passou quanto estava embaixo e, quando no topo, não deixaria faltar às classes mais baixas; não há regras definidas a não ser a sobrevivência
Nós, o público, assistimos a tudo pelo olhar de Goreng (Ivan Massagué), um sujeito que chega ao poço sem saber ao certo do que se trata. Cabe ao velho Trimagasi (Zorion Eguileor), seu companheiro de andar, ensinar a ele como funciona o local. O idoso está ali há mais tempo, já passou por diversos níveis e já faz parte daquele ecossistema nocivo.
Entendimentos
“O Poço” traz uma clara metáfora ao capitalismo, com sua divisão hierárquica por classes, mas se transforma em uma grande alegoria religiosa no último ato. Goreng pode ser Jesus para alguns, um messias, para outros, mas o que importa para a narrativa é que cabe a ele transmitir a mensagem aos outros confinados, nem que seja ao custo de seu sacrifício.
Passando pelos níveis, o protagonista se depara com os pecados capitais personificados. Há outros personagens que cruzam seu caminho, cada um com seu próprio significado e sua própria função para que a trama (e Goreng) entregue sua mensagem, porque é isso o que realmente importa em “O Poço”, a mensagem.
O filme espanhol funciona com um bom thriller de câmara, quase sempre com seus personagens confinados em um espaço pequeno, e também trabalha bem a fadiga pela repetição - o espectador se irrita com determinados sons, e a intenção é justamente essa. O suspense de Gaztelu-Urrutia é um sangrento, cruel e violento exercício de repetição, uma obra sobre os limites e a natureza do homem. Há salvação?
Há simbologia em todos os cantos de “O Poço” - do exemplar de “Dom Quixote de La Mancha”, de Miguel de Cervantes, lido e carregado por Goreng aos números dos andares. Há, é claro, uma narrativa funcional, que prende o espectador, mas o principal é o conteúdo - não adianta cobrar lógica ou uma explicação para o que se vê em tela, cabe apenas analisar. Como o próprio protagonista diz, em determinado momento, o que importa é a mensagem. Por “mensagem”, neste caso, deve-se entender o que o cada espectador extrair de toda a alegoria do filme.
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