Uma boa trama de precisa daquele clima de “tudo pode acontecer” para deixar o espectador realmente tenso pelos possíveis destinos deste ou daquele personagem. Foi o que tornou “Game of Thrones” tão especial logo de cara. Afinal, se uma série tem coragem de matar seu suposto protagonista, o cara que ilustrava seus cartazes, ela teria coragem para matar qualquer um (e foi mais ou menos o que vimos). Sentimento oposto tínhamos em “The Walking Dead”, por exemplo, quando as mortes de personagens principais já eram esperadas (e às vezes nem eram mortes…) e as dos coadjuvantes eram fáceis de ser previstas - se um personagem ganhasse algum arco, um drama familiar, um interesse romântico ou algo sobre seu passado, sua morte era quase certa.
Em “Round 6”, nova série coreana da Netflix, o sentimento é um pouco diferente. A série identifica de cara os seus protagonistas e também apresenta mostras de que irá sustentá-los por um bom tempo, mas o teor do texto ao menos não nos faz identificar quem morrerá a cada episódio.
A série tem início quando conhecemos Gi-Hun (Lee Jung-jae), um desempregado viciado em apostas e com uma dívida milionária, um sujeito amargurado pela vida, que vive com a mãe e perdeu o contato e a afinidade com a filha. Um dia, após se mostrar disposto a tudo por dinheiro, ele recebe um convite para participar de um jogo misterioso.
Chegando ao local, um confinamento em um lugar secreto, Gi-Hun encontra outros jogadores inveterados como ele, mas também bandidos, pessoas que se afundaram em dívidas por diversos motivos, investidores que fugiram com o dinheiro dos clientes… Pessoas que, assim como ele, se mostraram dispostas a assumir riscos por dinheiro e agora pagam o preço por isso.
Eles então recebem as regras: serão seis jogos em seis dias e o vencedor sairá com uma quantia milionária (algo em torno de R$ 200 milhões). Todos os jogos se baseiam em brincadeiras de crianças populares na Coreia, a diferença é que todos os derrotados são executados durante os jogos, ou seja, vence quem sobreviver.
Com nove episódios de cerca de uma hora (um deles tem 30 minutos), “Round 6” aproveita seu tempo para desenvolver não apenas o protagonista, mas também os personagens que o acompanharão na jornada e a relação entre eles. Assim, mesmo sabendo que Gi-Hun obviamente não será morto logo nos primeiros momentos, não queremos também que alguns outros personagens morram devido às relações construídas.
No período entre os jogos, “Round 6” funciona como uma trama de prisão, com grupos sendo formados, informações sigilosas sendo trocadas e alianças se consolidando visando proteção contra possíveis ataques. Paralelamente, há a trama de um policial (Park Hae Soo) que se infiltra nos jogos para descobrir o paradeiro do irmão desaparecido. O arco até garante uma nova camada à trama, mas é desnecessário e pouco se conecta com o arco principal.
A grande sacada do roteiro é oferecer jogos de fácil compreensão, mas mortais. É interessante que o texto coloque pessoas que sempre menosprezaram a vida e a importância de outros em papéis em que suas vidas são menosprezadas, em um lugar em que eles são os “cavalos de corrida”, como define um personagem - para os apostadores, pouco importa o destino daquelas pessoas além dos jogos. O único momento em que as regras parecem um pouco confusas, por ser um jogo bem tradicional da Coreia, o texto se torna didático e expositivo com a irritante presença dos convidados VIPs, para quem tudo é explicado. O curioso é que também é o jogo em que as regras menos importam.
O roteiro de Hwang Dong-hyuk , também diretor da série, ensaia um discurso de meritocracia torto (não muito diferente do que se vê por aí) e uma discussão sobre privilégios, mas nunca se aprofunda. A série se sai melhor quando discute a crueldade formada em torno de uma sociedade voltada em sua totalidade para o capitalismo.
A nova série da Netflix tem uma capacidade de surpreender mesmo que saibamos que alguns personagens não morrerão em determinados momentos. A grande questão é que já se sabe que apenas um ali sairá vivo e milionário, então os grandes conflitos acabam sendo aqueles que envolvem pessoas próximas ou decisões difíceis de serem tomadas. Há um humor involuntário em algumas sequências e outras que nos fazem rir de nervoso.
Gi-Hun é um ótimo protagonista, um sujeito cheio de falhas e inicialmente odiável, mas também um cara com quem logo simpatizamos. É interessante também como o texto constrói Sang-Woo (Park Hae-soo), amigo de infância de Gi-Hun e o orgulho do simples bairro em que cresceram, e Oh Il-Nam (Oh Yeong-su), um idoso com uma doença terminal de quem o protagonista se torna próximo.
A série tem alguns exageros característicos da dramaturgia coreana, mas funciona bem como uma versão mais realista da ótima “Alice in Borderland”. Na verdade, a série pode até ser consumida como um “Alice in Borderland” pré-distópica, como se fosse a origem dos jogos da série lançada ano passado também pela Netflix.
Mais uma prova da qualidade da indústria cinematográfica coreana, “Round 6 é ótima. Mesmo com algumas viradas previsíveis (a do arco do policial), a série ainda surpreende não por seu desfecho, que também não é difícil de se prever, mas pela forma como ele se dá e, ainda, pelo prólogo que domina boa parte do episódio final. São vários temas importantes, discussões sobre ética, lealdade, orgulho e capitalismo, mas tudo com uma roupagem pop cruel e ao mesmo tempo divertida.
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