Série mais vista da Netflix desde o seu lançamento, “Dahmer: Um Canibal Americano”, ou “Monstro: A História de Jeffrey Dahmer” (o título real não fica muito claro) teve uma estratégia de lançamento estranha. Nenhum episódio foi previamente liberado pela Netflix a jornalistas e não houve as protocolares entrevistas de lançamento - na verdade, todos ficaram sabendo da série quando um trailer sobre ela surgiu nas redes apenas cinco dias antes da data de lançamento.
Vale explicar que essa estratégia normalmente é utilizada quando a distribuidora/produtora não tem confiança nenhuma em seu produto e pretende evitar que críticas negativas antes do lançamento prejudiquem a audiência, mas duvido que seja esse o caso com “Dahmer”. Produzida por Ryan Murphy, uma das apostas de alta audiência da Netflix, a série chega em um momento de saturação dos dramas de crimes reais; a plataforma provavelmente previu também a reação das famílias das vítimas de Jeffrey Dahmer, que obviamente não querem ver uma romantização das mortes de seus entes queridos sendo executadas com um prazer quase sexual.
“Dahmer” é a história de Jeffrey Dahmer (Evan Peters), um serial killer que matou 17 pessoas e comeu órgãos de algumas delas em um intervalo de 13 anos. O início da série é complicado ao tentar justificar o comportamento do protagonista. O conhecemos já adulto, às voltas com uma vizinha devido ao “cheio de carne podre” vindo de seu apartamento, mas a narrativa é cheia de idas e vindas temporais. Somos levados à infância de Jeff, mostrado como uma criança solitária, com alguns gostos estranhos e que não lida bem com as constantes brigas familiares. Depois, o reencontramos adolescente, descobrindo sua orientação sexual, ainda com hábitos estranhos, e completamente sozinho após o divórcio de seus pais.
É só depois dessa construção do jovem incompreendido e solitário que a série mostra Dahmer cometendo seu primeiro assassinato em uma cena que quase passa a impressão de justificar a violência - Jeff tenta beijar um cara hétero que acabou que conhecer e não reage bem ao assédio. O resultado é a primeira das 17 mortes.
Uma das características das obras de crime de Ryan Murphy é o foco nas vítimas, mas “Dahmer” é tão autocentrada em seu personagem título que se distancia muito, por exemplo, de “O Assassinato de Gianni Versace: American Crime Story”. É curioso, assim, quando no sexto episódio (de um total de 10), a narrativa se transforma brevemente; o episódio tem início com o nascimento de um bebê com problemas auditivos. Nos momentos seguintes, conhecemos Tony (Rodney Buford), um jovem modelo que se torna uma vítima de Dahmer. Em alguns momentos, a série busca o ponto de vista de Tony em cenas sem som que mostram ele conhecendo e iniciando um relacionamento com Jeff.
A sequência com Tony, a primeira que nos aproxima de uma das vítimas, dura pouco mais de 15 minutos, e coloca “Dahmer” em um rumo mais interessante até o final da minissérie, mas o estrago já está feito. É quase sádica a maneira como o texto fetichiza o assassino e transforma seus rituais em experiências sensoriais e eróticas, algo que “Hannibal” fazia muito bem, mas com um texto de ficção e personagens fictícios. Ao contrário do que têm dito pelas redes, Hannibal Lecter não foi inspirado em Jeffrey Dahmer, mas no médico mexicano Alfredo Ballí Treviño.
O problema, vale ressaltar, não é contar a história de Jeffrey Dahmer mais uma vez, obras como a HQ “Meu Amigo Dahmer”, de John Backderf, fizeram isso com sutileza (a adaptação em filme também é razoável). Backderf, amigo de adolescência do assassino, recria suas memórias e constrói a personalidade de Jeff enquanto se pergunta como tantos “alarmes” comportamentais foram ignorados. Voltando: a questão não é recontar as histórias, é recriar os crimes de maneira estilizada, dramatizada - a sequência que encerra o já citado episódio de Tony, por exemplo, deixa clara a escolha da série pelo choque e pela romantização.
“Dahmer”, porém, é eficaz em outros aspectos. O texto é pontual ao reforçar como Jeff escapava de várias suspeitas por ser loiro e branco (e convida o espectador a fazer o mesmo); ainda, ao matar prioritariamente negros gays em plena epidemia de Aids, Dahmer eliminava vidas que “não importavam” para a sociedade americana da época. A discussão racial ganha força no episódio centrado em uma vizinha do assassino, mas nunca é totalmente desenvolvida.
Ryan Murphy tem sua assinatura espalhada pela série, do elenco à fotografia, passando pela utilização de cores e pela violência fetichizada. Mesmo que justifique a série com o interesse público acerca do caso, Murphy tenta também justificar ao espectador sua obsessão com o assassino. Em certa cena, Jeff se confessa e diz “Até mesmo em ‘Star Wars’ eu preferia os vilões”, se referindo a Darth Vader e ao Imperador Palpatine; em sequência, o padre responde: “eu também, são personagens mais bem escritos”.
Em “Dahmer: Um Canibal Americano”, a Netflix transforma a dor em entretenimento. A justificativa de “querer mostrar o pior da humanidade” se esvai quando a série mostra seu protagonista se alimentando de órgãos de pessoas assassinadas por ele. Para quem não conhece a história de Jeffrey Dahmer, “Dahmer: Um Canibal Americano” provavelmente soa menos oportunista ao explorar mais uma vez casos tão dolorosos. O que torna tudo mais passível de crítica é o fato de ótimas séries de crimes reais terem sido produzidas recentemente; obras como “Black Bird” (Apple), “Inacreditável” (Netflix) ou “Staircase” (HBO Max) mostram ser possível ser respeitoso, olhar para a vítima e não glamourizar o assassino.
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