A figura do roqueiro conservador que invadiu o Brasil nos últimos anos ainda surpreende, mas o comportamento vem sendo construído há décadas, praticamente desde que o rock foi “tomado” dos negros. Nos anos 1970, na Inglaterra, gente do peso dos lendários Eric Clapton e David Bowie tinha posições racistas anti-imigração - Clapton chegou a falar, durante um show ébrio, que o Reino Unido estava se tornando uma “colônia negra” e que queria “estrangeiros fora de seu país”.
Sua fala encontrava eco em posições de gente como Rod Stewart, mas, em contrapartida, despertava repulsa em uma geração mais nova. Foi a fala de Clapton que deu origem ao festival Rock Against Racism, comandado pelo The Clash e pelo Steel Pulse em 1978. Mykaell Riley, da banda de reggae inglesa, considerou uma ofensa que um sujeito que acabara de gravar “I Shot The Sheriff”, de Bob Marley, pudesse dizer uma coisa dessas.
Antes, Elvis fazia campanha contra uso de drogas (ironicamente), a cultura hippie e os Panteras Negras. Phil Anselmo, do Pantera, várias vezes fez referências nazistas e chegou, inclusive, a fazer o gesto de saudação a Hitler, com o braço estendido gritando “white power” ao final de um show em homenagem ao guitarrista Dimebag Darrell, também do Pantera, executado a tiros durante uma apresentação - sabe qual foi a justificativa dele? Ele afirmou ser uma homenagem ao “vinho branco que estavam tomando no camarim”, “poder branco”, entendeu? Sim, ele fez isso.
Nos Ramones, Johnny sempre teve apreço pelos governos republicanos dos EUA, era apoiador de George Bush e dos conflitos no Iraque, e não se incomodava com referências ao nazismo em canções como "Today Your Love, Tomorrow the World" (de autoria de Dee Dee), pelo contrário, sempre as achou "provocadoras". Foi para Johnny, inclusive, que acabara de roubar sua namorada, que Joey Ramone escreveu “The KKK Took My Baby Away”, entendeu? “O Ku Klux Klan roubou minha garota”. O KKK, no caso, era o talentoso, mas não muito confiável, Johnny Ramone. O posicionamento político era foco de briga constantes entre os dois.
Por aqui, desde o início dos anos 2010, vemos grandes nomes da música oitentista se posicionando do espectro conservador. Depois de Lobão (um bolsonarista arrependido) e Roger Moreira (um convicto), a bola da vez foi o Raimundos, banda que a maioria dos leitores nem deve saber que ainda existe.
Primeiro foi o ex-vocalista, Rodolfo Abrantes, hoje pastor evangélico, que elogiou o presidente, no ano passado. Na última semana foi Digão, guitarrista e vocalista desde a saída de Rodolfo, que falou que “temos que lutar para que o comunismo não se torne permanente”. Sim, porque para ele o isolamento social causado pela pandemia da Covid-19 é uma “amostra grátis de comunismo”. Parecia, inclusive, estar em campanha para a vaga de Regina Duarte, que acabou caindo na quinta-feira.
Digão, é curioso ressaltar, não se posiciona politicamente - o Raimundos como um todo, na verdade. Sempre pagou de “isentão”, nem de direita, nem de esquerda, mas seus discursos sempre foram alinhados aos de Olavo de Carvalho e de apoiadores do atual presidente; ele também adora atacar políticos de partidos de oposição, a quem se refere como “socialistas de iPhone”.
Questionado por seguidores, Digão respondeu: “A quem vou dar ouvidos!? Aos Mestres RAMONES que fizeram a minha vida ou a filhinhos bancados por papai e mamãe, doutrinados por mercenários disfarçados de revolucionários!? O único reacionário e fascista é você que não respeita uma opinião! Reza pra não acabar o dinheiro paterno pra pagar o iPhone e internet pra fazer a única coisa que conseguem… ser um hater”(sic). Os Ramones, como dito antes, tinha dois lados, Digão escolheu o que queria defender.
Alguns dias depois, Digão pediu "as mais sinceras desculpas a todos que se sentiram ofendidos". Mantendo a sua suposta isenção, o músico completou: "não sou bolsominion e não sou esquerdista". O que ele parece não ter percebido até o momento é que sua isenção, neste caso, já é uma posição. Criticar o isolamento social quando todos os especialistas o pregam como a solução possível até o momento não é algo que afeta apenas ele, mas também os que influencia. Além disso, é se colocar ao lado de quem tem entendimento semelhante ao seu, ou seja, o governo de Jair Bolsonaro e a paranoia de ameaça comunista.
O raimundo continua preso a um passado em que sua conta bancária era mais recheada e sua vida, mais agitada. O Raimundos foi uma banda importante nos anos 1990, se aproveitando da recém-adquirida liberdade de expressão para falar de sexo, drogas e outras coisas em suas letras quase sempre recheadas de machismo. Após um tempo, porém, a banda passou a representar o que há de ruim no rock: uma suposta superioridade e uma arrogância nostálgica. Criado e consolidado por negros, o gênero se tornou sinônimo de música para uma elite branca e conservadora - nem qualquer citação a Jimi Hendrix, Bad Brains ou Living Colour é capaz de tornar isso menos verdade.
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Digão hoje é um cara de 50 anos que canta sobre ser o selim da bicicleta de uma menina (“Selim”), sobre uma relação com menor de idade no parque de diversões (“Me Lambe”) ou sobre assédio sexual no ônibus (“Esporrei na Manivela”). Digão é o sujeito que define suas músicas como “ficção”, “zoeira” e “feitas para rir”, o cara que acredita poder ofender em nome da “liberdade de expressão”. Era bem melhor quando não lembrávamos dele.
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