Os Mamíferos foi a primeira grande banda do rock capixaba, mas teve curto período de atividade, de 1966 a 71. A sonoridade de Afonso Abreu (baixo), Mário Ruy (guitarra) e Marco Antônio Grijó (bateria) era explosiva, vanguardista, inovadora, misturando jazz, rock, psicodelia e música brasileira, super alinhados com o que era produzido mundo afora na época. O fim, no entanto, no lendário Festival de Guarapari, foi traumático e deixou cicatrizes no trio. São justamente essas marcas que dão o tom de “Diante dos Meus Olhos”, filme de André Félix em cartaz no Cine Metrópolis, na Ufes, e no Cine Jardins, em Jardim da Penha. Na exibição deste sábado, na Ufes, a banda Aurora Gordon se apresenta com repertório dos Mamíferos ao fim do filme.
Morador de Vitória desde os 15 anos, o carioca André, hoje com 38, optou por um documentário mais poético e pouco tradicional. “A história deles não foi tradicional. É uma história de uma banda da qual a gente tem relatos, algumas gravações, mas uma banda que não teve um disco, não teve uma história. Não teria como adotar um formato clássico de documentário musical”, conta o diretor, antes de completar: “Durante as entrevistas eu percebi que a história da banda não ficou no passado, ela ainda é muito presente nas vidas deles. Por isso achei legal fazer essa história real da vida cotidiana deles hoje. Não é sobre o que aconteceu, mas sobre o que acontece hoje”.
“Diante dos Meus Olhos” acompanha Afonso Abreu, Mário Ruy e Marco Antônio Grijó em momentos rotineiros. São poucos os trechos em que André usa a abordagem direta, fazendo perguntas para seus biografados. Essa abordagem mais humana e menos idealizada e se opõe à tendência de documentários: colocar seu biografado em um pedestal.
André entrou no projeto em 2013, quando começou a realizar entrevistas. A partir dali, foi ouvindo histórias contadas por cada “mamífero” e vendo o quanto as versões batiam. “Me aproximei não só deles, mas da família de cada um. Foi um desafio extrair deles os lados mais brilhantes de cada um, porque eles são brilhantes, mas nem sempre demonstram”, diz.
“Diante dos Meus Olhos” mostra que existe rusgas entre os três, rancores frutos de situações mal-resolvidas com a dissolução da banda, quando os organizadores do Festival de Guarapari queriam “bombar” o vocalista Aprígio Lyrio, que acompanhava a banda, deixando Os Mamíferos de lado - a organização chegou a contratar músicos do Rio para tocar com Aprígio ao lado de Mário Ruy, que passaria as músicas aos “convidados”. Fica claro o desconforto de Afonso ao lembrar a história.
Ao não colocar a banda em um pedestal, André Félix deixa de fora alguns mitos, como, por exemplo, a história de que Ney Matogrosso teria visto um show da banda devidamente maquiada e fantasiada e levado como inspiração para o Secos e Molhados. “Eu evitei cair na polêmica. O Ney foi professor substituto na Ufes nos anos 60, então a possibilidade não é absurda, mas ele já foi questionado sobre e disse não se lembrar. Também deixei de fora a história de que eles teriam ‘inventado’ o fusion antes de Miles Davis. Como eu vou contar isso sem forçar a barra?”, pontua o cineasta.
André afirma, ainda, que os integrantes da banda têm uma relação de amor e ódio com o filme. “É uma coisa natural, se ver falando aquelas coisas não deve ser fácil. Eles acham o filme duro, pesado, mas ele reflete a banda. É um tropo da literatura americana que é a vida não vivida. Eu particularmente adoro poder criar a partir desse mote do que poderia ser e não foi. Acho que o Espírito Santo sempre é ligado por essa sensação daquilo que poderia ter sido…”, pondera André.
O filme é parte do projeto Aurora Gordon, comandado por Murilo Abreu, filho de Afonso. Para resgatar a memória d’Os Mamíferos, Murilo resgata arquivos, músicas e gravações perdidas no tempo - ele já lançou discos e realizou shows para manter viva a história. “Acho que eles (Os Mamíferos) foram o primeiro grande evento pop no Estado, mostraram que era realmente possível fazer música pop por aqui. Por mais que não tenham se realizado completamente, foram uma fagulha para uma geração inteira, mostraram que era possível fazer. Eles proporcionaram para uma geração a possibilidade de sonhar”, conclui André.
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