Não é de hoje que existem na indústria do cinema ressalvas quanto ao clássico “E o Vento Levou…” (1939). Desde que se começou a olhar para narrativas sob outros prismas, o premiado longa assinado por Victor Fleming (mas também dirigido por George Cukor e Sam Wood) é alvo de críticas.
Vencedor de oito Oscar em 1940, incluindo Melhor Filme, o filme com a história da rica sulista Scarlett O’Hara (Vivian Leigh) se passa durante a Guerra Civil americana e o posterior período conhecido como a Reconstrução. Scarlett, a heroína, é parte de uma família tradicional, com muitos escravos, todos eles retratados como felizes e conformados com a situação, reforçando estereótipos das pessoas de cor e ignorando os horrores da escravidão.
Baseada no livro homônimo de Margaret Mitchell, a trama também coloca os Confederados, ou seja, os exércitos do Sul do país, como heróis incompreendidos lutando pela liberdade individual das pessoas, e não para preservar seus direitos de possuir escravos e explorá-los. O Sul dos EUA, afinal, vivia do cultivo de algodão, atividade toda exercida por escravos que enriqueciam grandes fazendeiros como… a família de Scarlett O’Hara.
Apesar de todas as críticas frequentes, não havia nenhuma urgência em colocar nos holofotes um filme lançado há mais de 80 anos, porém, o recém-lançado serviço de streaming HBO Max (ainda não disponível no Brasil) o colocou de novo em pauta. A nova plataforma reúne títulos de HBO e Warner, detentora dos direitos de “E O Vento Levou…”, e colocou o filme de 1939 e outros clássicos como um dos grandes chamarizes do serviço - o catálogo da Warner é cheio de clássicos, ao contrário de Netflix, Amazon etc.
Nada demais, talvez, se não fosse pelo momento vivido pelos EUA após o brutal e cruel assassinato de George Floyd, um homem preto, pelo agora ex-policial Derek Chauvin, branco, em Minneapolis, no último dia 25 de maio. Contrariando recomendações de distanciamento social e quarentena (eles se encontram num estágio de abertura e controle maior que o nosso, mas ainda assim...), milhares de pessoas foram às ruas em protestos contra o racismo. A força do movimento foi tão grande que ele se espalhou por todo o mundo.
Foi motivado por esse “timing” que o premiado roteirista John Ridley, vencedor do Oscar por “12 Anos de Escravidão”, escreveu um artigo no “LA Times” solicitando a retirada momentânea do filme do catálogo do HBO Max. Ridley diz entender que o filme é um retrato de uma época, mas pondera se tratar de um recorte que legitima a escravidão e mostra os donos de escravos como nobres americanos.
O roteirista completa: “não sou a favor da censura. Não acho que ‘E o Vento Levou…’ tenha que ficar trancado em um porão. Somente peço que, após um respeitoso período, o filme seja reinserido no catálogo com outros filmes que ofereçam uma visão mais ampla de período histórico, filmes que mostrem quem realmente eram os Confederados e o que eles queriam. Ou talvez que o disponibilizem junto de conversas e narrativas sobre a importância de ter muitas vozes dividindo histórias sob olhares diferentes ao invés de apenas reforçar a cultura das maiorias”.
Ninguém está pedindo que o filme seja apagado e que queimem suas cópias, apenas que não sirva o chamariz de um serviço popular em um momento em que a luta por igualdade racial está no centro das atenções. Já houve quem vociferasse que “o mundo está chato” e “cheio de lacração”, mas trata-se de uma questão de empatia, de se colocar em outra posição.
Não são justos também os argumentos de que “daqui a pouco não poderão fazer filmes sobre a Segunda Guerra”. Veja bem, imagine um filme sobre o nazismo que colocasse Hitler em um altar e o tratasse como um herói incompreendido derrotado pelos malvados capitalistas… É mais ou menos isso que “E o Vento Levou…” faz com os donos de escravos - o fato de ser um clássico não o exime de ser racista.
Os filmes são, sim, um registro histórico de uma época. Eles não devem ser destruídos, mas consumidos, com o passar dos anos, com outro olhar. A retirada momentânea do filme de catálogo pode não ser a melhor opção, mas é a melhor possível no momento. A HBO entendeu o pedido e o atendeu dizendo que quando o filme voltar ao catálogo, sem nenhum corte ou censura, a plataforma trará também conteúdos mais fiéis às dores da escravidão e à própria História americana. A empresa, assim, mostra ter entendido a frase de Angela Davis: “numa sociedade racista, não basta não ser racista. É necessário ser antirracista”.
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