Mark Twain uma vez disse: “A verdade é mais estranha que a ficção, porque a ficção é obrigada a lidar com possibilidades; já a verdade, não”. Várias vezes durante a produção de “Eleita”, série da Amazon Prime Video, os roteiristas Clarice Falcão e Célio Porto se depararam com essa questão.
Uma comédia com pegada política, “Eleita” acompanha Fefê Pessoa (Clarice Falcão), uma mulher que “de zoeira” decide se candidatar ao governo do Rio de Janeiro em um futuro (muito) próximo e acaba ganhando o pleito. A série tem início exatamente no dia da posse de Fefê, quando ela chega virada da festa de réveillon e pretende renunciar, mas muda de ideia ao perceber que parte da população se vê representada nela. Sem ter a menor noção do que fazer (e também sem ter noção nenhuma), ela assume o posto e passa a governar o Rio de Janeiro à sua maneira.
“Muitas vezes a gente tinha que exagerar porque a realidade estava alcançando a gente”, conta Clarice, em entrevista. “Eleita” começou a ser escrita ainda durante os anos de governo de Michel Temer, ou seja, uma escalada gigante de bizarrices veio na sequência com a campanha eleitoral de 2018, a eleição de Jair Bolsonaro e todas as decisões tomadas pelo presidente durante a pandemia de Covid-19.
“Eleita” bebe na fonte de séries como “The Office” e “Fleabag” para criar uma história original. Filmada em locais como o Palácio das Laranjeiras, a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e a Confeitaria Colombo, é interessante como a série usa uma linguagem clássica em diversos momentos, como uma verdadeira série política, tornando Fefê um ser ainda mais estranho naqueles ambientes.
Em contrapartida, o texto dialoga com outros gêneros em momentos mais lúdicos e cheios de detalhes. A série usa o recurso das chamadas de jornal para situar o espectador de alguns acontecimentos, mas foge da formalidade tradicional - boa parte das notícias são interpretadas pelo influencer Boca de 09, que as “traduz” para um público mais jovem e avesso aos telejornais - no mundo da série, não existe mais jornalismo profissional. Ainda, sem muito destaque, a barra de inferior do jornal traz notícias absurdas (ou talvez nem tanto) que reforçam a distopia da série.
Depois de assistir aos sete episódios da primeira temporada de “Eleita”, é impossível imaginar outra pessoa no lugar de Fefê. Clarice Falcão abraça o absurdo de forma natural, como se fosse parte dela, o que talvez seja verdade. Na coletiva de lançamento da série, a atriz/roteirista afirmou que a personagem representava o pior dela. “Eu tenho uma carência bizarra, uma vontade de ser fanfarrona, de ganhar pela piada”, disse. Com experiência de Porta dos Fundos, a atriz se destaca com facilidade na comédia com um texto sob medida - afinal, como já foi dito, ela é uma das criadoras e roteiristas da série.
“Eleita” se esforça para ser isenta, fazendo piadas com a política fluminense (“é impossível você ser pior que o último governador”), com a atual extrema-direita e com a desunião de uma esquerda mais preocupada em ser amável. A série traz arcos distintos, mas tem na jornada de Fefê como governadora seu fio condutor. A grande vilã da temporada é a deputada Pastora Hosana (Luciana Paes), que disputa a presidência da câmara dos deputados com ideias bem conservadoras e um plano maquiavélico. O conservadorismo da deputada contrasta com a liberdade quase anárquica de Fefê e cria uma divertida dicotomia no texto.
Há também outras tramas e outros personagens, como o chefe de gabinete vivido por Diogo Vilela, um político tradicional que sofre com as loucuras da protagonista; a melhor amiga, Nanda (Bella Camero), com quem Fefê vive o “casal” da trama e sai um pouco do núcleo político; a Teresa de Polly Marinho, única funcionária do governo que sabe o que está fazendo; e a “primeira dama” vivida por Rafael Delgado, com quem a protagonista vive uma relação de idas e vindas. Há ainda participações de Diogo Defante, Estevam Nabote, Noemia Oliveira, Luis Lobianco, Ingrid Guimarães… O elenco é grande, mesmo que em participações pequenas, possibilitando que a série pouco se repita.
A direção de Carolina Jabor e Rodrigo Vam Der Put casa bem com o tom proposto pelo texto, alternando entre a formalidade do ambiente político e as loucuras de Fefê. Por exemplo, uma viagem de ácido da “gov” acaba se transformando em um episódio musical. É ótimo perceber ser justamente esse arco que conduz “Eleita” para um campo mais sério; enquanto pessoas dançam e cantam em tela, a protagonista lida com seu momento mais baixo (e olha que Fefê viveu vários momentos baixos até ali) e o roteiro discute erros e acertos da personagem, além de finalmente fazê-la enxergar as pessoas à sua volta.
Um estudo de personagem, a série dá protagonismo a uma mulher que foge dos padrões comportamentais, pois Fefê fala abertamente de sexo, cocô ou de seu apreço por drogas. A personagem é quem desperta no público aquela vergonha alheia, aquele constrangimento que Michael Scott (Steve Carrell) fazia tão bem em “The Office” ou que Julia Louis-Dreyfus tornou a força motriz de “Veep”, outra referência para “Eleita”.
Ainda assim, em meio a tanto absurdo, a série fala de política e suas consequências, introduzindo o assunto para um público que, tal qual Fefê, talvez não seja tão interessado assim por ele. “Eleita” é uma sátira inteligente justamente por se aproximar tanto da realidade, tratando um assunto super atual de forma leve e divertida. “Espero que a gente possa rir um pouco ao invés de chorar ininterruptamente como nos últimos anos”, ponderou Clarice.
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