“Não tem como você lutar por liberdade pela metade”, diz Leandro Roque de Oliveira, o Emicida, em determinado momento e “AmarElo: É Tudo Pra Ontem”, documentário que chega na terça (8) à Netflix. A fala é dita em uma conversa ao lado de Pablo Vittar e Majur, cantoras transexuais que dividem com Emicida a canção título do último disco do rapper (e também do documentário).
O filme dirigido por Fred Ouro Preto mistura recortes da carreira do rapper paulistano com trechos da apresentação feita por ele no Teatro Municipal de São Paulo no final de 2019. Mas “AmarElo” é muito mais do que apenas o registro de um show ou bastidores, o filme é uma aula de cultura brasileira. Com narração do próprio Emicida, linguagem e estética pop, o documentário conta a jornada de heróis esquecidos da História do Brasil.
É através da história narrada por Emicida que entendemos a relevância daquele show, de um artista preto ocupando um espaço em que a maioria dos negros nunca pisou na vida, um espaço que a narrativa histórica tratou de conferir às elites brancas. A linguagem pop da narrativa não apenas facilita sua assimilação como também dá leveza ao filme como produto. Carisma não se compra, e Emicida tem de sobra.
Entre uma canção e outra, o filme estabelece conexões entre a Semana de Arte Moderna de 22, o ato de fundação do Movimento Negro Unificado (MNU), em 1978, e o show de Emicida Municipal. “Meus sonhos e minhas lutas começaram muito tempo antes da minha chegada, mas pra isso fazer sentido tem que contextualizar algumas paradas”, diz, antes de partir para a fundamentação.
Essa contextualização é o que faz de “AmarElo” um filme tão foda. O texto resgata memórias apagadas de “contribuições não-brancas para o desenvolvimento do país”. Emicida liga o fim da escravidão a figuras como Tebas, um negro escravizado que é um dos responsáveis por marcos da arquitetura de São Paulo. Quantos contaram sua história? Emicida o faz.
Outras ligações se fazem mais fáceis, mas não menos importantes, como o samba, que consolidou o exemplo do que Machado de Assis chamava de “Brasil real”. A música criada por pretos e mestiços nas periferias saiu do Brasil e definiu a identidade brasileira mundo afora, mas demorou para ser bem aceita pelas elites brasileiras - situação não muito diferente do que aconteceu com o rap por aqui, que só passou a ser mais tolerado quando os Racionais MCs estouraram nos anos 1990.
E se Emicida narra a história de artistas e figuras negras é justamente porque foram eles, os negros, que construíram a cultura brasileira. E se a cultura hip hop vem dos EUA, no Brasil ela encontrou o samba e se tornou algo único; os encontros do rapper com os lendários Wilson das Neves e Zeca Pagadinho são prova disso. Ainda, e se hoje temos a grande americana Angela Davis como representante do feminismo negro, por que falamos tão pouco de Lélia Gonzalez? Todas essas questões são trazidas em “AmarElo”.
Abdias Nascimento, Luiz Gama, Candeia, Ruth de Souza... Sim, Emicida, como dito anteriormente, resgata negros apagados pela história branca. E é interessante ver como todas essas histórias se conectam às músicas apresentadas no show.
A frase que abre texto não está ali de forma gratuita, mas justamente por ser o que permeia “AmarElo”, o documentário. Emicida não busca um discurso de segregação, muito pelo contrário, ele abre as portas para quem quiser chegar, abraçar a(s) causa(s) e espalhar amor sem se importar com cor de pele, identidade de gênero, orientação sexual, classe social ou qualquer outra diferença, afinal, “não tem como você lutar por liberdade pela metade”.
O documentário é um grito pela união e emociona justamente por isso. Enquanto gente como o vice-presidente Hamilton Mourão diz não haver racismo no Brasil, jogando séculos de história do país para baixo do tapete, Emicida expõe todo sofrimento sofrido pelo povo preto brasileiro contando suas histórias e mostrando ser impossível dissociá-las da História do Brasil. Ainda assim, ele escolhe o amor como solução.
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