Crítico de cinema e apaixonado por cultura pop, Rafael Braz é Jornalista de A Gazeta desde 2008. Além disso é colunista de cultura, comentarista da Rádio CBN Vitória e comanda semanalmente o quadro Em Cartaz

Espetacular, "Não! Não Olhe!" é um dos melhores filmes de 2022

Terceiro filme de Jordan Peele ("Corra!"), "Não! Não Olhe" homenageia o senso de espetáculo da indústria de cinema em algo raro: um excelente e autoral filme pipoca

Vitória
Publicado em 24/08/2022 às 13h53
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Filme "Não! Não Olhe!", de Jordan Peele. Crédito: Universal Pictures/Divulgação

“Não! Não Olhe!”, novo filme de Jordan Peele (“Corra!” e “Nós”), é sobretudo um filme sobre a capacidade do cinema de transformar tudo em espetáculo, palavra repetida diversas vezes ao longo dos 130 minutos de filme. Ainda com a tela preta, letras brancas trazem um trecho do livro de Naum, do Velho Testamento da Bíblia Cristã: “E lançarei sobre ti coisas abomináveis, e envergonhar-te-ei, e pôr-te-ei como espetáculo”. No instante seguinte, um momento meio nonsense reforça esse sentido do espetáculo a partir do inusitado e nos questiona acerca do que estamos presenciando.

“Não! Não Olhe!” acompanha Otis “OJ” Haywood Jr. (Daniel Kaluuya) e sua irmã, Emerald (Keke Palmer) após a morte do pai (Keith David) sob circunstâncias um tanto misteriosas. O luto pesa para os irmãos, mas cada um lida com ele à sua forma. OJ testemunha do ocorrido com o pai, se fecha em silêncio, prefere não falar sobre o assunto e mantém o pai “vivo” ao tocar o negócio da família, uma fazenda de treinamento de cavalos que atende produções de Hollywood. Em, por sua vez, quer deixar o rancho para trás e seguir a vida na indústria de entretenimento de qualquer outra forma que apareça. O filme ainda tem Ricky “Jupe” Park (Steven Yeun), uma ex-estrela mirim marcada pelo trauma e que agora comanda um parque temático do Velho Oeste e o sujeito que personifica a transformação do trauma em espetáculo.

Uma noite, no rancho, um dos cavalos de OJ se comporta de maneira estranha e foge. Quando vai atrás do animal, OJ se depara com luzes e sons nunca antes ouvidos por ele. “Você tem certeza do que viu?”, questiona Em. O primeiro ato do filme é excelente na construção da narrativa - Jordan Peele se aproveita do que já foi mostrado nos trailers para brincar com a expectativa do espectador de forma quase sádica; afinal, “Não! Não Olhe!” é o filme que foi mostrado nas prévias, mas também é algo completamente diferente.

Em seu novo filme, Peele opta por uma narrativa mais direta, sem grandes reviravoltas e focada na construção e no desenvolvimento da história. Isso não significa que o filme não tenha surpresas, apenas que o diretor não faz delas a sua força motriz. O senso de espetáculo de “Não! Não Olhe!” é visível na forte influência de Steven Spielberg e nas referências narrativas a clássicos como “Contatos Imediatos de Terceiro Grau”. Assim como Spielberg, Peele aposta no encanto daqueles do outro lado da tela, um sentimento gerado pela imprevisibilidade do texto e pela grandiosidade da narrativa.

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Filme "Não! Não Olhe!", de Jordan Peele. Crédito: Universal Pictures/Divulgação

O cineasta entende também a necessidade de manter sua ameaça escondida; vemos luzes nos céus, ouvimos sons estranhos, mas o filme mantém seu “monstro” em segredo durante boa parte da projeção, despertando o medo do desconhecido, do que nós e os Haywood podemos encontrar na próxima cena.

Peele transforma o medo e a tensão que constrói com maestria em um grande espetáculo a que assistimos do outro lado da tela, mas também um espetáculo cinematográfico que se resolve na narrativa - é o cinema quem “salva”, quem aparece para o resgate quando tudo parece perdido.

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Filme "Não! Não Olhe!", de Jordan Peele. Crédito: Universal Pictures/Divulgação

“Não! Não Olhe!” é excelente ao espetacularizar o micro; “podemos estar salvando o mundo”, diz um personagem em determinado momento conduzido pelo senso de grandiosidade do que acostumou a ver nos cinemas. Quando o terceiro ato entra em movimento, o filme chega a um ponto inimaginável para um terror de ficção científica, e é justamente isso que faz do trabalho de Jordan Peele algo tão interessante.

Seria fácil esperar do diretor as narrativas sobre conflitos raciais e racismo nos EUA, algo tratado com bom humor e fantasia por ele, mas também de forma assertiva em “Corra” e “Nós”. Ao invés disso, Peele usa sua expertise para criar um blockbuster, um filme pipoca autoral como já não se faz hoje em dia, uma arte perdida no cinema hollywoodiano.

“Não! Não Olhe!” é uma aula do poder da narrativa, um filme de terror/ficção científica à primeira vista simples, sem as muletas dos grandes efeitos especiais ou das viradas para surpreender o público. Jordan Peele constrói a grandiosidade de seu terceiro filme a partir de seu entendimento do fazer cinematográfico, da arte de contar e construir histórias a partir de um bom texto, uma ótima condução e uma boa produção - o som de Johnnie Burn é impecável e imprevisível, misturando trilha de faroestes e de ficção científica. 

Mesmo com a narrativa praticamente restrita ao rancho dos Haywood, o filme parece grandioso, com tomadas abertas que dão a dimensão espacial da região. A direção de fotografia de Hoyte Van Hoytema, que trabalhou com Christopher Nolan em "Interestelar", "Dunkirk" e "Tenet" dá a "Não! Não Olhe!" esse grande escopo às vezes de maneira quase irônica, registrando OJ como um herói, um salvador.

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Filme "Não! Não Olhe!", de Jordan Peele. Crédito: Universal Pictures/Divulgação

“Não! Não Olhe!” talvez confunda o espectador. É um terror, uma ficção científica, mas por que tanto humor? Outrora diretor de esquetes humorísticas, Peele vê no humor sua oportunidade para despertar empatia e, ainda, para inserir suas críticas sociais. Como uma família negra americana, a última coisa que os Haywood querem é ter autoridades envolvidas na “descoberta”, preferem ir ao programa da Oprah... Esse humor cai quase todo sobre a grande e expansiva atuação de Keke Palmer, em total contraposição à introspecção do personagem de Daniel Kaluuya.

O filme de Jordan Peele funcionaria melhor com mais conexões - a história de Jupe, mesmo usada para contextualizar a transformação do trauma em espetáculo, parece deslocada. Ainda assim, o cineasta consegue entregar um blockbuster à moda antiga, um filme autoral que homenageia a indústria e nomes como Alfred Hitchcock, M. Night Shyamalan e o já citado Steven Spielberg, uma obra que mistura o cinema de arte ao comercial e o blockbuster pipoca a um cinema provocador.

Em tempos de grandes franquias, multiversos, continuações, adaptações e refilmagens entupindo as salas de cinema, Jordan Peele nos obriga a olhar para seu trabalho e para o espaço que conquistou na indústria sem fazer grandes concessões.

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