Apesar de ser um cineasta de grande pegada pop, Noah Baumbach nunca conseguiu se tornar um cineasta popular, converter seu lado pop em bilheteria. Suas obras, sempre com um olhar irônico sobre comportamentos e a sociedade, lhe renderam a alcunha de um cineasta cult e também três indicações ao Oscar. Essas características tornaram Baumbach um diretor desejado pelas plataformas de streaming, pois leva credibilidade a elas e encontra nelas um veículo mais abrangente para suas obras.
Não à toa, Noah Baumbach agora chega a seu terceiro filme lançado pela Netflix - os dois anteriores, “Os Meyerowitz” (2017) e “História de um Casamento” (2019), dois de seus filmes mais comerciais, contrastam até com a ideia inicial de “Ruído Branco”, que chega dia 30 à plataforma após breve carreira nos cinemas (para credenciá-lo à temporada de prêmios.
“Ruído Branco” adapta o livro homônimo, um clássico da literatura estadunidense escrito por Don DeLillo e uma obra até então considerada “inadaptável”. Publicado em 1985, o livro é uma crítica à sociedade do final do século passado, uma estrutura consumida pelo consumismo, pela superexposição midiática, teorias da conspiração, ou seja, bem parecida com os dias de hoje, o que torna o filme de Baumbach mais atual do que o esperado.
O filme tem início com uma cena de puro amor ao cinema; em uma sala, o professor Murray Siskind (Don Cheadle, ótimo), exibe aos alunos uma montagem de cenas de acidentes automobilísticos em filmes de Hollywood. A ideia é que os alunos olhem além da violência das cenas e enxerguem o otimismo, o senso de crescimento, de progresso representado pelo crescente aumento na qualidade das cenas, nos avanços que permitiram a indústria superar seus limites filme após filme, a traduzir o otimismo do sonho americano.
Logo depois conhecemos Jack Gladney (Adam Driver), outro professor, um especialista em estudos sobre Hitler (mesmo que não fale um pingo de alemão e morra de vergonha disso). Jack e Murray comparam, com tom academicista, as vidas do ditador alemão à de Elvis Presley, objeto de estudo de Murray. A sequência serve para levar ao filme a crítica de DeLillo à arrogância academicista, mas também para contrastar a segurança externa de Jack, um professor adorado pelos alunos, mas com uma fragilidade intelectual escondida pela postura acadêmica.
Jack é casado com Babette (Greta Gerwig), no quarto casamento de ambos, e tem uma família cheia de filhos e enteados de relacionamentos anteriores. Os Gladney são obcecados pela morte e frequentemente discutem quem ficaria mais abalado com a morte do outro. Babette apresenta indícios de demência e é viciada em um misterioso remédio sobre o qual pouco se conhece - em um mundo pré-internet, a família recorre a amigos e à literatura para descobrir os efeitos de tal droga, o Dylar. Da mesma forma, quando um desastre ambiental acontece (que remete à cena de abertura), nuvens tóxicas invadem a cidade e obriga os Gladneys a saírem de casa.
Ao contrário do que normalmente utiliza como estrutura narrativa, um olhar irônico sobre o cotidiano, Baumbach parte para o surrealismo em “Ruído Branco”. O filme se sustenta no absurdo, e tanto Driver quanto Gerwig têm plena ciência dos excessos de suas atuações, reforçando o hiperrealismo da obra de DeLillo.
É no segundo ato, com a já citada nuvem tóxica e a proximidade dos personagens com a morte, que o filme mostra a que veio. O texto mistura terror, humor e drama ao obrigar o espectador a se ver em meio àquele absurdo, àquela dualidade entre a imagem que se vende e o que se é. Os Gladney finalmente deixam transparecer os próprios privilégios de forma quase ridícula quando um possível fim se aproxima e obrigam o espectador a pelo menos tentar reconhecer os seus (mas nunca duvide da capacidade de inverterem a mensagem do filme…).
É também esse o momento em que a trilha sonora de Danny Elfman ganha destaque, reforçando a tensão da fuga de todos e da corrida contra a morte iminente. O filme ainda veste uma roupagem à Spielberg na construção de um espetáculo e no encantamento com o risco, além de esteticamente dialogar com “Contatos Imediatos de Terceiro Grau” (1978) em diversas cenas.
Baumbach divide o filme em três atos bem distintos e brinca com diferentes gêneros em cada um deles. Assim, o diretor passeia pelo humor comportamental que marca seu trabalho, mas também pelo cinema de aventura com aspecto blockbuster (é de longe o filme mais caro que já comandou, com orçamento de US$ 80 milhões), pelo terror e pelo drama social que carrega a mensagem do livro de DeLillo.
“Ruído Branco” tem ótimos e absurdos diálogos que potencializam a essência do material original e dão ao filme seu tom cômico. Mesmo lidando com questões existenciais e sociais pesadas, o filme de Noah Baumbach é quase sempre leve - até nos momentos em que parte para uma espécie de terror, o texto mantém sua estrutura de exagero.
Para os fãs mais puristas do livro de DeLillo, “Ruído Branco” pode ser um incômodo. Baumbach toma algumas liberdades com alguns personagens (o pai de Babette, por exemplo) e condensa muita coisa em seus 130 minutos de filme. Para dar mais ritmo ao filme, o diretor também transforma alguns devaneios de Jack em diálogos com outros personagens.
Ao fim, “Ruído Branco” é ótimo, um engraçado olhar para a sociedade que vivemos e, principalmente, para a maneira como vivemos. Apesar de situado nos anos 1980, “Ruído Branco” é atual demais. O filme faz o espectador rir de nervoso justamente por fazê-lo se identificar em meio a tantos absurdos e reconhecer toda a carga do texto. Sem ser panfletário e utilizando o humor como meio, Noah Baumbach conduz o filme com maestria e ainda conta com atuações deliciosamente exageradas de seus protagonistas.
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