“Como você não percebeu, por 17 anos, que não era uma garota?”. A pergunta feita a Tosiek (Alin Szewcyk) em certa altura de “Fanfic” não tem uma resposta exata, mas o protagonista, uma pessoa trans não-binarie que atende pelos pronomes masculinos, responde com o olhar e com a expressão de quem também não sabe explicar.
Dirigido por Marta Karwowska, “Fanfic” é um filme sobre descobertas e amadurecimento. Quando conhecemos Tosiek, ele ainda atende pelo nome de Tosia e se veste como uma menina adolescente de 17 anos. O texto não traz essas questões de imediato, mas já as ensaia em histórias paralelas que conta a partir dos textos escritos pelo protagonista. Neste mundo, mostrado como parte de um mundo etéreo, Tosia já se vê como um homem, quase um cosplay de Kurt Cobain, à frente de uma banda de rock.
A vida de Tosia/Tosiek parece mudar quando ela conhece Leon (Jan Cieciara), um novo aluno por quem cria um interesse complexo e correspondido. Leon é gay, o que torna a relação entre eles ainda mais estranha para o olhar de alguns. “Fanfic” é ótimo e sensível ao lidar com a questão de gênero e a sexualidade de seus personagens, sem abusar do didatismo, mas deixando claro a diferença entre gênero e orientação sexual.
É muito interessante como o filme tira a questão do gênero de seu centro e se estrutura como um drama romântico com personagens LGBTIAP+. A transformação de Tosiek é visível – antes preso a roupas e convenções femininas, incomodado com o próprio corpo, ele se liberta ao se ver com roupas de Leon. É o momento em que eles se conectam além da atração física, mas em suas complicações e lutas por autoaceitação.
“Fanfic” é delicado na maior parte do tempo, mas também recorre a alguns clichês para ganhar força dramática. Tosiek vira alvo de transfobia nas redes, entre alunos, e busca descobrir o responsável por tudo aquilo. Mesmo que o arco nunca funcione como deveria, ele, talvez até involuntariamente, constrói as relações do personagem com o mundo; poucas pessoas realmente o questionam sobre seu gênero, a questão é muito mais pessoal. O roteiro leva esse questionamento mais para um conflito de gerações – o pai de Tosiek acha que a “filha” quer chamar a atenção dele, por sua ausência, e que tudo se resolveria com um passeio no parque. Ao fim, porém, ele mesmo percebe que o filho sempre esteve ali.
O roteiro ainda introduz uma professora insuportável que representa as instituições, o controle e a padronização de pensamentos e comportamentos. Ela questiona uma jovem por ser bonita demais, de causar uma distração para os outros alunos, questiona as roupas que Tosiek passa a usar… É o velho mundo, são as velhas convenções que não aceitam o fato de não estarem certas e de não mais possuírem o controle da narrativa social.
“Fanfic” também tem problemas. Toda a parte dos escritos de Tosiek é subestimada pelo roteiro mesmo que a narrativa paralela funciona como a representação do conflito interno do protagonista. O filme também tem algumas viradas muito imediatas e conflitos mal resolvidos, como o arco do cyberbullying sofrido por Tosiek.
Ainda assim, dede forma geral, “Fanfic” funciona pela sensibilidade e pela naturalidade com que trata assuntos que a dramaturgia normalmente prefere transformar em conflito. Trata-se de uma história de amor, de descobertas e autoconhecimento, uma jornada íntima que se transforma num clichê romântico confortável justamente quando Tosiek finalmente se sente confortável em sua própria vida.
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